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MARCO CIVIL DA INTERNET: ONDE NÃO EXISTE NEUTRALIDADE


O recorte dado por este texto ao debate sobre o marco civil da internet sustenta que tanto a via da neutralidade como da não–neutralidade da rede favorecem o capital. Ambos os caminhos percorrem as regras do livre mercado. A questão é identificar qual fração do capital irá prevalecer. Mas o objetivo do texto é o compreender algo oculto pela ideologia – como consciência falsa da realidade – durante o debate em curso sobre o marco civil da internet. Vá-se pelo início:
O debate entre a neutralidade e a não-neutralidade do Marco Civil da Internet esconde que existe uma posição sempre favorável ao capital.
O correto argumento em defesa da neutralidade da rede é no sentido de que ela impede a fragmentação do produto e do serviço de acesso à internet em “pacotes de transmissão de dados”. Explicando de modo inverso, a não-neutralidade visa apenas a criação de novos modelos de negócio, onde pessoas terão acesso a "pacotes" distintos por diferentes preços (e-mail e sites de notícia/e-mail, sites de notícia e redes sociais/ e-mail, sites de notícia, redes sociais e streaming de mídias, por exemplo) (1).

Logo, a não-neutralidade apenas estabeleceria diferentes custos para acessar aplicações e conteúdos, dificultando o acesso à internet dos mais pobres. Cria-se a divisão entre a “internet dos ricos” e a “internet dos pobres”. Esta última seria a periferia do sistema, com acesso limitado a recursos e que, em longo prazo, tenderia a aumentar as barreiras de exclusão social. Os mais pobres seriam cada vez mais diferentes dos ricos no que se refere ao acesso à informação, cultura, ferramentas de comunicação e interação social.

Citem-se dois exemplos para esclarecer o que se busca apresentar: Primeiro, a hipótese de autoeducação por vídeos de universidades que acreditam no “open knowledge”. Um consumidor da periferia não terá acessos a vídeo-aulas, caso não possa pagar pelo pacote de serviços mais caro (que inclui o streaming de vídeos de tais universidades). Seu tráfego de dados será limitado a determinados tipos de dados. Teremos barreiras para o acesso ao conhecimento em defesa de "novos modelos de negócio". Segundo, com a cobrança diferenciada de serviços, seria reproduzida a mesma separação social que ocorre nas cidades brasileiras hoje: periferias com acesso limitado a equipamentos culturais e serviços de qualidade, e anéis de riqueza em que seriam construídas barreiras de estratificação social com o objetivo de afastar a presença e entrada da periferia nessas praças.

Rafael Zanatta delimita o tema que aqui interessa focar (2), a neutralidade da rede é uma questão de escolha: é, no fundo, um “trade-off” entre incentivar o setor de software e serviços de tecnologia da informação (TI) ou promover o setor de telecomunicações (empresas distribuidoras e provedoras do acesso à internet). Explica-se:

Sob o olhar da arquitetura de rede, vê-se que diferentes arquiteturas de sistemas exercem diferentes efeitos na taxa e na concentração da inovação tecnológica. Por um lado, em uma arquitetura baseada em um núcleo central de controle (core-centred architecture),  a inovação será guiada pelos interesses e motivações dos operadores da rede, que terão a habilidade de controlar a taxa e o tipo de inovação que desejam, bloqueando e restringindo a adesão de novas tecnologias a suas redes e, em última instância, escolhendo àquelas tecnologias (e aplicativos, programas e aparelhos) que serão vencedoras e àquelas que não serão sequer participantes da rede – um ambiente ideal para o próprio conceito de capital (concentração, monopólio e cartéis).

Pelo outro lado, em uma arquitetura em que não há um núcleo central de controle (end-to-end architecture), as decisões seriam fundamentalmente guiadas pelos novos participantes no nível de aplicações, o que supostamente traz maior diversidade de tecnologias e incertezas sobre quais irão ter sucesso ou não – um ambiente idealizado de capitalismo (não concentração, livre mercado, disputas etc.).

É sob esse olhar que vários pesquisadores afirmam que a imparcialidade dos operadores das redes, os baixos custos de inovação no setor (subsidiados pelo Estado brasileiro) e o ambiente de diversidade e incerteza nesse mercado (ausência do marco legal da internet) podem ter exercido um papel fundamental para o crescimento do setor privado de software e serviços de TI no Brasil (2). (Em outra oportunidade se pode tecer comentários sobre o crescimento do mercado de TI. Por ora, escaparia do foco planejado).

O argumento é claro: a neutralidade da rede irá limitar o poder de controle dos provedores de acesso à internet sobre a arquitetura na rede. E mais, impede-os de bloquear ou discriminar aplicações, programas, equipamentos e conteúdos específicos, que não lhes atendam ao interesse. Isso seria democracia com ampliação de acesso, pois a arquitetura “end-to-end” é boa para os provedores de aplicação, em certo detrimento aos provedores de acesso realizado pelas empresas de telecomunicações.

Assim, a neutralidade da rede é um debate sobre tomar um lado em favor do setor privado de software e serviços de TI. O pano de fundo do argumento é sobre “acesso” e “democracia”. Todavia, esconde-se que a base que sustenta essa argumentação é o fetiche “relação liberdade e capitalismo”, ou se preferir, livre iniciativa.


Em outras palavras, o fundamento da tese da neutralidade da rede no contexto atual brasileiro é proteger e incentivar “os avanços realizados pelo setor privado de TI”. E o “argumento biombo” é o da existência do benefício social: a pulverização do setor privado de software e serviços de TI enseja o crescimento da cena empreendedora, significando maior distribuição de riquezas e atração de investimentos. Evidentemente que o capital agradece.

Portanto, o atual debate do marco civil da internet esconde que:

  • Qualquer que seja o caminho escolhido para o marco civil da internet, consubstanciada no Projeto de Lei nº 2.126/2007, ele cria demasiadas facilidades para o capital privado. Sua linha geral é velha conhecida nossa do neoliberalismo, seja nas privatizações, seja na legislação das concessões e outros tipos de vínculos Estado-setor privado: privatização dos lucros e estatização dos prejuízos. E isso sem falarmos nos riscos que são criados para o patrimônio, o endividamento e a receita da União (também deve ser objeto de outro texto, para manter o escopo deste).
  • Ele favorece claramente um tipo de política pública que já não será mais universal e sim focal. Renuncia-se à universalização na medida em que a política do Estado será a de empenhar-se, acima de tudo, para seduzir e atrair o capital privado para tal ou qual alocação de recursos (no caso, a favor do setor privado de TI). Ora, se o critério essencial do capital é o lucro, os produtos e serviços de TI ganham um caráter não mais universal, mas de obra dirigida a focos ou áreas mais lucrativas, ali onde a parceria for boa para o setor privado.
  • Na discussão, o Estado aparece, em seu poder decisório, como um parceiro menor ou empenhado em garantir, a todo custo, o sucesso do outro parceiro, mais ou menos como se o Estado brasileiro estivesse, de fato, tratando de servir ao capital e à sua acumulação privada ao promover essa modalidade de marco legal. Aliás, em outros termos, essa termina sendo, na prática, o objetivo assumido pelo Estado brasileiro com o marco civil da internet: é preciso dar toda garantia de lucratividade privada aos empreendimentos.

Sabe-se que o capital apresenta os seus próprios interesses como sendo o interesse geral da sociedade. Para conseguir fazê-lo, é obrigada a mascarar a existência de seus próprios interesses, apresentando-os encobertos pelo interesse geral. Só pode consegui-lo situando-se no nível ideológico, pois é precisamente a ideologia que mascara a natureza profunda das relações sociais. É nesse sentido que se pode falar da pobreza do debate sobre o marco legal da internet. Como aqui sustentado, o Estado brasileiro novamente é o instrumento do capital tomado em seu conjunto, uma vez que como ele é o local onde se armam os conflitos entre as diferentes camadas da classe do capital, no presente caso, ele está sendo levado a impor a uma parte da classe determinadas soluções adequadas ao interesse político da classe do capital em seu conjunto (3). (Aqui seria possível comentar algo a respeito da chamada autonomia relativa do Estado, mas que nesta ocasião escaparia do escopo deste texto).

     Por fim, pode-se dizer que se reconhece que há certa inquietação em alguns ativistas e nichos das redes sociais sobre o Projeto de Lei nº 2.126/2011, que trata do marco civil da internet. Nada que tome uma repercussão em massa, talvez por decorrência da baixa inclusão digital no Brasil e do elevado número de analfabetos digitais ainda existentes, entre outros aspectos tão importantes quantos esses. O que se busca revelar aqui é a ideologia travada no debate.
Não existe ainda democratização das ferramentas tecnológicas e muito menos liberdade na rede mundial de computadores (internet). Lamenta-se se isso assusta os incautos, que fazem confissão de fé na internet livre. Os exemplos falam por si. Os dados ofertados por Edward Snowden; os países listados pelas organizações Repórter sem Fronteira (baixe relatório) e OpenNet Initiative (ONI) abrangem todos os gostos (da China, Cuba, Venezuela e Correia do Norte até Canadá, Reino Unido, Finlândia, França, Alemanha, Austrália, EUA... e a lista é longa). Considere ainda os  bloqueios realizados pelo Reino Unido, China, Síria, Egito, Líbia, França para “evitar manifestações”.
O marco civil da internet hoje em debate no Brasil sobre neutralidade ou não-neutralidade é ideológico, ou seja, esconde a “opção única” (sic) de garantir à internet as leis de mercado (4).






__________________________
Texto: Colunista do blog Um Quê de Marx: Sociedade, Poder e Direito na Contramão.
Referências do texto:
(1) Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que busca mostrar porque a neutralidade de rede é importante. Nos parágrafos que se seguem com descrições e exemplos, copiei os principais argumentos.
(2) Trechos e resumos do texto “Quando a política bloqueia direitos: estratégias para a defesa da neutralidade de rede”, de Rafael Zanatta. Link: http://rafazanatta.blogspot.com.br/2014/03/quando-politica-bloqueia-direitos.html
(3) SALAMA, Pierre e VALIER, Jacques. Estado e Intervencionismo: uma introdução à economia política. Cap. 9 “As intervenções do Estado”.
(4) Segundo Marx, em toda a ideologia os seres humanos e suas relações surgem de cabeça para baixo, como em uma câmara escura. MARX, K. ENGELS. F. Ideologia Alemã. 1º reim. 1º ed. São Paulo: editorial Boitempo, 2009. p. 94

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