O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o
século 21 do trabalho do século 19 de Marx, que leva o mesmo título. Piketty
nega que fosse essa sua intenção, na verdade – o que parece certo, uma vez que
seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele não nos conta por que
razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está demorando tanto para tanta
gente se levantar, sob o fardo do desemprego prolongado e da execução da
hipoteca de milhões de casas. Ele não nos ajuda a entender por que o
crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em oposição à China, e por que a
Europa está travada sob uma política de austeridade e uma economia de estagnação.
O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e
seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a produzir
níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de nós, é má
notícia. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro
volume de sua versão do Capital. Piketty fracassa em observar isso, o que não é
surpresa, já que sempre clamou, diante das acusações da mídia de direita de que
é um marxista disfarçado, que não leu O Capitalde Marx.
Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar sua
argumentação. Sua descrição das diferenças entre renda e riqueza é persuasiva e
útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre herança, do imposto
progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora quase
certamente não politicamente viável) antídotos contra o avanço da concentração
de riqueza e poder.
Mas, por que razão ocorre essa tendência ao crescimento da desigualdade?
A partir de seus dados (temperados com ótimas alusões literárias a Jane Austen
e Balzac), ele deriva uma lei matemática para explicar o que acontece: o
contínuo aumento da acumulação de riqueza por parte do famoso 1% (termo
popularizado graças, claro, ao movimento Occupy) é devido ao simples fato de
que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre excede a taxa de crescimento
da renda (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do
capital.
Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma
explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e
sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo. Marx
obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao desequilíbrio de poder
entre capital e trabalho. E essa explicação ainda está valendo. A queda
constante da participação do trabalho na renda nacional, desde os anos 1970, é
decorrente do declínio do poder político e econômico, à medida que o capital
mobilizava tecnologia, desemprego, deslocalização de empresas e políticas
antitrabalho (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir
qualquer oposição.
Como Alan Budd, um conselheiro econômico de Margaret Thatcher, confessou
num momento em que baixou a guarda: as políticas anti-inflação dos anos 1980
mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e aumentar o
desemprego era um modo extremamente desejável de reduzir a força das classes
trabalhadoras… o que foi construído, em termos marxistas, como uma crise do
capitalismo que recriava um exército de mão de obra de reserva, possibilitou
que os capitalistas lucrassem mais do que nunca.” A disparidade entre a
remuneração média dos trabalhadores e dos executivos-chefes era cerca de trinta
para um em 1970. Hoje está bem acima de trezentos para um e, no caso do
MacDonalds, cerca de 1200 para um.
Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty
também não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do
capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a capacidade
do mercado de absorver os produtos do capital. Henry Ford reconheceu esse
dilema há muito tempo, quando determinou o salário de cinco dólares para o dia
de oito horas dos trabalhadores – para aumentar a demanda dos consumidores,
disse.
Muitos pensavam que a falta de demanda efetiva estava na base da Grande
Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas expansionistas keynesianas
depois da Segunda Guerra Mundial e resultou em alguma redução das desigualdades
de renda (nem tanto da riqueza), em meio a uma forte demanda que levou ao
crescimento. Mas essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho
e na construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação
progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980, durante
cerca de meio século, o imposto de renda federal mais alto, nos EUA, era em
média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o crescimento (outra parte das
evidências de Piketty, que rebate os argumentos da direita).
Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas que
eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do trabalho.
Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas respeitáveis, o
pensamento de Milton Friedman deslocou-se para o lado da oferta, e teve início
uma cruzada para estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o
Estado social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma
queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma grande fonte
de renda dos ultra ricos – passaram a ser tributados por taxas muito menores
nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de capital do 1% do topo da pirâmide.
Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty. Tal
“efeito cascata” de benefícios dos ricos ao restante da população (outra crença
favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado por leis matemáticas.
Tudo era política. Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais
importante tornou-se: e cadê a demanda?
Piketty ignora essa questão. Os anos 1990 encobriram essa resposta com
vasta expansão do crédito, inclusive estendendo o financiamento hipotecário aos
mercados sub-prime. Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar,
como aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman
Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, enquanto tudo e
todos se davam mal, depois de 2009 as taxas de lucro, e a consequente
concentração de riqueza privada, recuperaram-se muito rapidamente. As taxas de
lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre estiveram nos EUA. As
empresas estão sentadas sobre grande quantidade de dinheiro e recusam-se a gastá-lo,
porque as condições do mercado não estão robustas. A formulação da lei
matemática de Piketty camufla, mais do que revela a respeito da classe política
envolvida. Como notou Warren Buffett, “claro que há luta de classes, e é a
minha classe, a dos ricos, que está lutando, e estamos vencendo.” Uma
medida-chave de sua vitória são as crescentes disparidades da riqueza e renda
do 1% do topo em relação a todo o resto da população.
Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele
repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um processo, não
uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer
mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente – por meio da exploração
da força de trabalho. Piketty define capital como o estoque de todos os ativos
em mãos de particulares, empresas e governos que podem ser negociados no
mercado – não importa se estão sendo usados ou não. Isso inclui terra, imóveis
e direito de propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias.
Como determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil,
sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r, significativa,
temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não há como avaliá-lo
independentemente do valor dos bens e serviços usados para produzi-lo, ou por
quanto ele pode ser vendido no mercado.
Todo o pensamento econômico neoclássico (base do pensamento de Piketty)
está fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende essencialmente
da taxa de crescimento, porque o capital é avaliado pelo modo como produz, e
não pelo que ocorreu em sua produção. Seu valor é fortemente influenciado por
condições especulativas, e pode ser seriamente distorcido pela famosa
“exuberância irracional” que Greenspan apontou como característica dos mercados
imobiliário e de ações. Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do
valor das coleções de arte dos financiadores de hedge – a partir da definição
de capital (e as razões para sua inclusão são bastante débeis), então a
explicação de Piketty para o aumento das disparidades de riqueza e renda
desabariam, embora sua descrição do estado das desigualdades passadas e
presentes ainda ficassem em pé.
Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão sendo
usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno sobre o
capital que está sendo usado, é porque uma parte do capital foi retirado de
circulação. Restringir a oferta de capital para novos investimentos (fenômeno
que estamos testemunhando agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o
capital que está em circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o
que fazem as companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro:
é o que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a
tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é definido e
medido) exceder sempre a taxa de crescimento da renda. Esta é a forma como o
capital garante sua própria reprodução, não importa quão desconfortáveis sejam
as consequências para o resto de nós. E é assim que a classe capitalista vive.
Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty. Mas,
sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à oligarquia surgem
está seriamente comprometida. Suas propostas de solução para a desigualdade são
ingênuas, se não utópicas. E ele certamente não produziu um modelo de trabalho
para o capital do século 21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus
equivalentes para os dias atuais.
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