VOCÊ SABE O QUE FOI A PERESTROIKA E A GLASNOST? ALGUMAS RÁPIDAS CONSIDERAÇÕES
1. Introdução
Nos próximos dias, especialmente no mês de dezembro, se falará muito sobre o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Um dos fatores apontados pelos historiadores para o fim da URSS foram os planos chamados de Perestroika e a Glasnost. Este texto busca tecer alguns comentários sobre esses planos. E mais, quer demonstrar que, na ausência de uma real alternativa que regenerasse o socialismo, houve amplo espaço para a restauração da burguesia e economia de mercado. Tanto a ausência de alternativa como o espaço para os restauracionistas é particularmente revelador de como o stalinismo – que se apoiava na mentira, no dogma, no medo e na incultura política – não saia de cena e criou todas as condições para o colapso da URSS, via o burocrata Gorbachev.
Não se desconhece a existência de motivos externos para o colapso da URSS (31 de dezembro de 1991) e de amplos motivos internos; apenas este texto faz um recorte no conjunto de fatos internos restrito ao campo dos planos Perestroika e Glasnost. Exemplifique-se: sequer se menciona o papel fraudulento de Ielstin, a tentativa de golpe em agosto de 1991, a fundação da CEI, entre outros. O foco do texto é demonstrar como é que um plano burocrático, fruto da própria anarquia burocrática e da opressão política e cultural, ambas derivadas do stalinismo, se combinaram para criar um atraso econômico relativo crescente na URSS e a uma também crescente oposição de quase todas as camadas sociais ao poder burocrático.
2. A Perestroika e a Glasnost
Exatamente em 11 de junho de 1985, perante uma sessão plenária do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PUCS), Mikhail Gorbachev fez duras críticas sobre o estado da economia soviética. Apelou por mudanças radicais e urgentes, pois, segundo ele, “não nos resta mais tempo” (1). Em seu livro “Perestroika – novas ideais para o meu pais e o mundo” (idem 1), diz: “... deixe-me primeiro explicar a situação nada simples que se desenvolveu no país nos anos 1980 e fez com que a Perestroika fosse necessária e inevitável. Num certo momento, e isto ficou bastante claro na segunda metade dos anos 1970, aconteceu algo a primeira vista inexplicável: o país começou a perder impulso. (...) Analisando a situação, primeiro descobrimos uma diminuição do crescimento econômico. Nos últimos quinze anos, a taxa de crescimento da renda nacional caíra para mais da metade e, no início dos anos 1980, chegara a um nível próximo da estagnação. Um país que antes estivera alcançando as nações mais avançadas do mundo, agora começava a perder posição. Além disso, o hiato existente na eficiência da produção, na qualidade dos produtos, no desenvolvimento científico e tecnológico, na geração de tecnologia avançada e em seu uso começou a se alargar, e não a nosso favor” (idem 1).
![]() |
Mikhail Sergueievitch Gorbachev ou Gorbatchev é um político e estadista russo, mais conhecido por ter sido o último líder da União Soviética, entre 1985 e 1991. |
As razões apontadas pelos defensores da Perestroika podem ser assim resumidas: (a) a estagnação da economia, (b) o esgotamento do modelo extensivo de crescimento, (c) o atraso tecnológico cada vez mais pronunciado em relação ao bloco capitalista, (d) a redução do ritmo de elevação do nível de vida, (e) a crise de desmotivação, (f) a degradação moral provocada pela corrupção e privilégios e (g) o elevado gasto militar.
O discurso defendia a mudança do destino dos recursos do setor de defesa para o conjunto da economia e especialmente ao atendimento das crescentes demandas sociais. Dizia-se que a crescente integração comercial e a necessidade de acompanhar os avanços tecnológicos passaram a se constituir em imensa pressão sobre o sistema soviético.
Apontam-se outros fatores de natureza político-social como elementos explicativos da Perestroika e Glasnost: “a URSS da década de 1980 já não era o país majoritariamente rural do período que se estende do Primeiro Plano Quinquenal até a Segunda Guerra, industrializado às pressas, e com uma população de extração e mentalidade essencialmente camponesa, jogada de repente dentro das fábricas. Nos anos 1980, a URSS já era um país consideravelmente industrializado, modernizado, com população urbana já de segunda geração e uma sociedade de elevado nível cultural” (2).
Vários autores afirmam, ainda, que todo o processo de desenvolvimento, urbanização, escolarização anteriores a Perestroika possibilitaram a existência de uma sociedade soviética que encontrava múltiplas formas alternativas de comunicar-se e organizar-se, apesar do Estado policial e opressivo, isto é, existiam formas para a sociedade resistir à opressão e à fragmentação que o sistema impunha (3). Assim, os tentáculos do Estado e do Partido não chegavam aos círculos familiares, sociais, de imigrantes, culturais, grupos literários, de estudos ou através de universidades abertas (não institucionalizadas perante o Estado), inclusive eram publicados livros e revistas que abordavam desde temas técnicos e científicos, passando pelo comportamento da juventude e famílias, até chegar aos males causados pela gestão burocrática para a economia e para o país (3).
3. Algumas Considerações
O programa de reformas e a eleição de Gorbachev expressava certo consenso, formado entre os setores do alto escalão da burocracia soviética. Ora, se ele pode chegar ao cargo mais importante de secretário-geral do partido é porque existia apoio entre setores e uma maioria de dirigentes do partido, no mínimo dentro do Comitê Central e no Birô Político, favorável a ele e suas ideias. A Perestroika, então, foi uma ação da burocracia da URSS antes de acelerar ela mesma o ritmo de sua desagregação.
Em reforço ao argumento anterior: como não havia movimentos abertos de oposição na URSS a Perestroika foi reforma do centro do poder. Ela foi resposta de cima, quiçá em caráter preventivo as reclamações que circulavam na URSS (entre famílias, grupos informais de estudos, de publicações de revistas e jornais, do descontentamento da população com a corrupção generalizada nos diversos escalões da burocracia, manifestada nas piadas cheias de escárnio que corriam pela sociedade – e que não eram despercebidas, pois Gorbachev acusou entendê-las diversas vezes em discurso).
Desse modo, as reformas também correspondiam aos interesses materiais de setores da elite soviética dentro do quadro específico da crise econômica e social que vivia a URSS no início dos anos 1980 (3).
A existência de Estado policial e opressivo não foi um período de estagnação intelectual e de atividades, ao contrário, há uma aguda fermentação política e cultural entre a elite soviética e ampla camada da classe média com qualificação profissional e cultural (4). Por consequência, o estereótipo de monolitismo stalinista (tão propagandeado pelo cinema americano) estava morrendo, ou já havia morrido, bem antes da “abertura espetacular” de Gorbachev como a mídia “do ocidente” vendia na época. E, esclareça-se, isso não quer significar que podia haver oposição política pública e aberta, pois como acentuado antes, tais ações eram limitadas e controladas (esfera informal de estudos, clubes de leituras etc).
Os reformadores na URSS falavam de modo abstrato, com retórica reformista espetacular e midiática, sem esclarecer através de que medidas concretas se processariam tais mudanças. O resultado é que a Perestroika não produziu reconstrução, mas desconstrução, desorganização, redução da produção, o que implicou em escassez, inflação e mais carência.
4. Considerações Finais: O Avanço das Reformas Destroi a URSS.
Admitindo-se a máxima boa vontade, pode-se dizer que se no início do processo “não estavam evidentes” as forças interessadas em reintroduzir o capitalismo na URSS. Entretanto, analisando as medidas que foram sendo adotadas na sequencia e constatado a posteriori o que se passou na década de 1990, ou seja, a rápida reconversão dos países da antiga URSS em economias capitalistas, pode-se concluir que, se por um lado não havia um programa que explicitasse o final do processo, pelo outro lado, a via escolhida pelos reformadores caminhava para tal finalidade – reintrodução do modo de produção capitalista.
Ademais, a política econômica violou regras básicas, tais como o recuo na planificação centralizada, o afrouxamento nos controles sobre empresas e a reintrodução gradual de mecanismos de mercado na economia soviética. Dessa forma, com o fim do plano e das orientações vindas do centro, já não se podia falar de uma economia nacional integrada.
A desarticulação da economia nacionalizada, a queda da produção e a escassez abriram uma corrida desesperada pela população, pelas empresas, regiões e Repúblicas para obtenção de mantimentos, materiais e suprimentos, gerando estocagem ilegal de produtos, especulação e inflação. Abriu-se espaço para as máfias, a economia subterrânea, de seu papel parasitário, secundário dentro da economia de planejamento, emergindo o controle de bens e serviços pelas gangues, associadas aos dirigentes corruptos do aparato do Estado, que passaram a controlar tudo após a privatização, com o fim da URSS.
Diante das resistências, o governo de Gorbachev começou uma segunda fase, após 1996, na qual as reformas econômicas seriam doravante acompanhadas de apelos à democratização da vida pública, ao envolvimento da população, de modo que a Glasnost foi um conjunto, perfumado, de reformas políticas fixadas pelos reformadores como “precondição para a Perestroika”. A liberalização controlada, e manipulada, seria usada pelos reformadores como arma para derrotar a resistência às reformas.
Ou seja, a Glasnost não era uma verdadeira democracia socialista, pois a democratização tinha limites definidos: derrotar os conservadores e imobilistas dentro do aparelho do Estado e do partido, através de um afrouxamento preventivo, mantido o controle do processo.
A sociedade soviética aproveitou as brechas para transgredir as regras, mas capitalizada pela disputa entre os burocratas. Logo se descobriu que quanto mais avançasse a Glasnost, mas difícil seria manter o controle político. A liberalização política “controlada”, em vez de reforçar a Perestroika, terminou por atropelá-la e favoreceu a ala dos burocratas reformadores. Estes passaram a questionar não somente os erros, os desvios do partido, mas a própria Revolução de Outubro, seus dirigentes, o socialismo, a URSS, seus símbolos, sua história, sua necessidade e validade, suas realizações.
A conclusão que se obtém é que nenhuma lógica indica que a reforma política que derrotou o regime da burocracia e da ditadura tivesse que implicar em uma contrarevolução social, que reconverteu a propriedade nacionalizada em propriedade privada e levou o país de volta ao capitalismo.
Diante do fechamento do poder burocrático em si mesmo e na ausência de uma alternativa real de regeneração do socialismo, a dianteira da luta democrática caiu nas mãos dos setores restauracionistas do capitalismo.
A decomposição promovida por Gorbachev deu sinal verde e retirou qualquer trava para que a burguesia que existia em germinação no País – e permanentemente sob a forma da burocracia stalinista – convertesse os reformistas soviéticos em neoliberais mais radicais. Eles permitiram, após 1991, os planos de privatização generalizada das empresas estatais e o retorno a uma economia de mercado. Eis o fruto da Perestroika e da Glasnost.
Artigo escrito por: Helio Rodrigues- Sociedade, Poder e Direito na Contramão, colaborador e colunista do blog um quê de Marx.
(1) GORBACHEV, M. Perestroika: novas ideias para meu
país e o mundo. 22 ed, São Paulo, 1992. (2) PAULINO, R. Socialismo do século XX: o que deu
errado? 2 ed. São Paulo: Letras do Brasil, 2010. (3) MANDEL, E. 1989. Além da Perestroika. São Paulo,
1989, v. 1
__________. Trotsky como alternativa. São Paulo: Ed xamã,
1995. (4) HOBSBAWM, E. (1998). Era dos extremos. O breve
século XX. 1914-1991 2 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
É permitido o compartilhamento desta publicação e até mesmo a edição da mesma. Sem fins lucrativos e cite a fonte. Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
Comentários
Postar um comentário