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A ciência e o senso comum


''A ciência nasce do problema, da desordem''



GALILEU GALILEI (1564 - 1642), é considerado por muitos o pai da ciência moderna porque foi o primeiro a combinar observação experimental com a descrição dos fenômenos num contexto teórico, com leis expressas em formulação matemática. Pode-se dizer que Galileu marcou a transição da filosofia natural da Antigüidade ao método científico atual. Segundo Galileu, o universo é "um grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos", mas "que não se pode compreender antes de entender a língua e os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto". Isso significa que a linguagem matemática é, para Galileu, fundamental para a explicação dos fenômenos naturais.

Procedemos de forma ordenada por que pressupomos que haja ordem. Sem ordem não há problema a ser resolvido. Por que o problema é exatamente construir uma ordem ainda invisível de uma desordem visível e imediata. A inspiração mais profunda da ciência, a busca da ordem, não é um privilégio dos cientistas, ela se fundamenta na própria necessidade de sobrevivência, portanto, é livre e democrática a todos os seres. 
Não importam as diferenças que separam o senso comum da ciência: ambos estão em busca da ordem. “O místico crê em um Deus desconhecido. O pensador e o cientista creem numa ordem desconhecida. É difícil dizer qual deles sobrepuja o outro em sua devoção não-racional.”Evans-Pritchard, famoso antropólogo inglês, estudou a crença na feitiçaria (representando aqui uma construção social comum) entre um grupo africano, os azande. E é assim que ele descreve uma situação no cotidiano mágico:
“A princípio achei estranho viver entre os Azande e ouvir suas ingênuas explicações de infortúnios que, para nós, têm causas evidentes”. Depois de certo tempo aprendi a lógica do seu pensamento e passei a aplicar noções de feitiçaria de forma tão espontânea quanto eles mesmos... Certa vez, um menino bateu o pé num pequeno toco de madeira que estava no seu caminho – coisa que acontece frequentemente na África. O corte era no dedão e era impossível mantê-lo limpo. Inflamou. Ele afirmou que bateu o dedo no toco por causa da feitiçaria. Como era meu hábito argumentar com os Azande e criticar suas declarações, foi o que fiz. Disse ao garoto que ele batera o pé no toco de madeira porque ele havia sido descuidado, e que o toco não havia sido colocado no caminho por feitiçaria, pois ele ali crescera naturalmente. Ele concordou que a feitiçaria não era responsável pelo fato de o toco estar no seu caminho, mas acrescentou que ele tinha os seus olhos bem abertos para evitar tocos – como, na verdade, os Azande fazem cuidadosamente – e que se ele não tivesse sido enfeitiçado ele teria visto o toco. Como argumento final para comprovar o seu ponto de vista ele acrescentou que cortes não demoram dias e dias para cicatrizar, mas que, ao contrário, cicatrizam rapidamente, pois esta é a natureza dos cortes. 
Por que, então, sua ferida havia inflamado e permanecido aberta, se não houvesse feitiçaria atrás dela?” (E. Evans Pritchard. Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. p. 64-7). 
A ciência não acredita em magia. Mas o senso comum teimosamente se agarra a ela. Você já viu uma pessoa jogando boliche? Não é curioso que ela entorte o corpo, depois de lançada a bola, num esforço para alterar a sua direção, à distância? Esta torcida de corpo é um ritual mágico, uma tentativa de mudar o curso dos eventos por meio do desejo. A crença na magia, como a crença no milagre, nasce da visão de um universo no qual os desejos e as emoções podem alterar os fatos. A ciência diz que isto não é verdade. 
Isto parece nos levar à conclusão de que o pensamento mágico e o pensamento científico moram em mundos muito distantes, mas não... Existe uma continuidade entre o pensamento científico e o senso comum. Os mesmos são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. Segundo G. Myrdal, a ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior a ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse a nossa ciência. Depois de cerca de quatro séculos, desde que surgiu com seus fundadores, curiosamente a ciência está apresentando sérias ameaças à nossa sobrevivência. 



E você, caro leitor, o que acha a respeito da dicotomia entre a ciência e o senso comum?
                                        




Texto: Matheus P. S. Ramos, autor e colunista do blog Um quê de  Marx. Livro de pesquisa: Filosofia da ciência: Introdução ao jogo e suas regras, Rubem Alves.
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