Para Locke, toda guerra da burguesia é uma guerra santa, uma verdadeira cruzada contra adversários que “renunciaram” a seus próprios direitos humanos. A guerra da burguesia é uma guerra justa, uma guerra de defesa da humanidade já que aos adversários, lhes são atribuída a execução de uma guerra injusta e contra a humanidade. A burguesia se crê detentora do direito de aniquilar seus inimigos em nome dos direitos humanos. Tudo isto está baseado em Locke quando este explica o estado de guerra. Este estado de guerra parte do pressuposto de um “nós” contra todos os demais. Aos demais lhes é atribuída o propósito de ir contra os pacíficos “nós”. O estado de guerra é um estado de ódio e de destruição contra a todos aqueles que não se submetem a lei comum da razão e utilizam a força e a violência. Para a burguesia estes devem ser tratados com feras, como criaturas perigosas que ameaçam o “nós”. Os “outros” manifestaram o seu ódio e como consequência devem ser tratados como feras selvagens. Assim sendo, disto se deduz que quem trata de colocar a outro homem baixo seu poder absoluto se coloca com respeito a este em um estado de guerra; porque esse propósito deve interpretar-se como uma declaração de desígnios contrários a sua vida. Logo, quem pretenda submeter alguém ao seu poder, sem consentimento prévio deste alguém, o tratará como queira e uma vez que o tenha submetido, acabará também com sua vida se este for o seu capricho; porque ninguém pode desejar manter alguém submetido ao seu poder absoluto se não seja para obriga-lo pela força a algo que vai contra o seu direito de liberdade, ou seja, para escravizar... Quem tenta escravizar alguém, se coloca em estado de guerra contra este alguém. Para Locke, quem pretendia submetê-lo, por um lado, eram as monarquias absolutistas de seu tempo. Locke se referia também a certas tendências na Inglaterra que defendiam o retorno do direito divino real. Mas se referia especialmente as monarquias absolutistas europeias e também ao Ceilão, que era expressamente mencionado por Locke juntamente com a Índia. Todos eles são colocados em estado de guerra com o “nós” de Locke, ainda que não o saibam. Também se refere à aqueles que vivem no estado natural e resistem para a transformação em estado civil, como os povos indígenas da América do Norte, os quais também se colocaram em estado de guerra, por mais que também não saibam. Em todos estes casos Locke projeta a vontade de escravizá-lo, tanto ele como ao seu “nós”. Na verdade, nenhum dos “outros” quer escravizar ninguém... Mas quem são os “outros” para Locke? Seguramente não são os ingleses, nem a burguesia inglesa que estão do lado dos que “defendem” o gênero humano, a “lei da razão de Deus” que foi posta no coração humano. Para Locke, os ingleses e a burguesia inglesa são os “missionários” do gênero humano. São eles quem descobrem quem está se levantando em contra do gênero humano, menos eles próprios que atuam em sua defesa. Se trata de um verdadeiro estado de guerra, já que não existe um juiz entre as partes. E para Locke, quando não existe um juiz na terra, o recurso se dirige para Deus que julgará. Enquanto isso, Locke como único juiz dentro de sua própria consciência, que um dia responderá a Deus, o Juiz Supremo de todos os homens, atuará segundo a razão que Deus lhe deu.
DIREITO DE GUERRA
O estado de guerra significa para o “lado justo”, ou seja, “o lado que defende o gênero humano”, um direito de guerra. De fato não existe a necessidade que exista ou se faça a guerra, porém o direito à guerra pertence ao “lado justo” a priori e será uma “guerra justa” na “defesa” do gênero humano o que justificaria por exemplo o direito à revolução burguesa no estado civil. Mesmo considerando que no estado civil existem leis e juízes, o direito de guerra se mantém já que os juízes poderiam estar ao serviço das forças que lutam contra o “gênero humano” e não existiria nenhuma lei ou carta constitucional que poderiam impedir tal direito em parte por considerar que qualquer ação estaria comprometida com a corrupção evidente do sistema jurídico alterando leis para encobrir e proteger a violência daqueles indivíduos opositores do “gênero humano”. Mesmo considerando que o estado civil se encontra regido pelo estado natural e sua lei natural. Se o estado civil não se guia pela lei natural, se coloca em estado de guerra com o “nós”. Portanto, entre o “nós” e o estado civil vigora o estado natural. E sendo assim, o estado civil estaria em estado de guerra com o “nós”. Como não há juiz e cada um é juiz, o direito de intervir está mantido. Além disso, este direito não é apenas para o súdito do estado civil mas também para qualquer ser humano de qualquer parte do mundo que também defenda o “gênero humano”. Desta maneira a burguesia inglesa poderia intervir em qualquer parte do mundo na defesa do “gênero humano” desde que imponha a lei natural. Foi desta maneira que Locke acabou imputando todo o mundo não-burguês por “se colocar em estado de guerra contra o gênero humano”. A consequência é a declaração de guerra contra o mundo não-burguês que se levantou contra o “gênero humano” mesmo que este mundo não tenha consciência disto. Esta é a guerra justa de Locke! Toda conquista é permitida se feita por meio da guerra justa. O conquistador pode além de tudo isso exigir “legítimas” reparações para compensar seus gastos com a guerra justa já que os “outros” ao se defenderem, promovem uma guerra “injusta”. Desta forma adquire com “justiça” os bens de todo mundo, ou seja, pode conquistar o mundo, pode se apropriar das riquezas do mundo sem ser responsabilizado já que atuava dentro dos princípios justos defendidos por Locke. O procedimento é então desmascarado já que para fazer a “guerra justa” Locke imputa a todo o mundo a vontade de fazer a guerra contra a burguesia, para desta forma poder fazer a guerra justa contra que estiver em contra da burguesia. Imputa a todo mundo a vontade de escravizar a burguesia para assim poder escravizar o mundo. Imputa a todo mundo o desejo de roubar as propriedades da burguesia para tomar as riquezas do mundo todo. Todos os que resistam serão, como feras selvagens, aniquilados em nome da humanidade. E assim, o aniquilamento é transformado em consequência da imposição dos direitos humanos.
LOCKE E O TIO SAM NO VIETNÃ
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O B-52 foi muito utilizado na Guerra do Vietnã.
Milhões perderam a vida por culpa de bombardeios indiscriminados durante toda a
guerra. |
Colocar Deus como último juiz é o mesmo que colocar a
burguesia como último juiz, que irá condenar e castigar o mundo em nome da lei
natural, da humanidade, da lei e da razão. E desta maneira Locke formula o
precedente clássico da inversão dos direitos humanos, que atualmente continua
sendo o marco referencial do Ocidente para impor-se sobre todo o mundo. Ainda
hoje, todas as guerras promovidas pelo Ocidente são consideradas guerras
justas. Tão justas, que o adversário (o inimigo) não pode reivindicar para si
nenhum direito e quem reclama por estes direitos é colocado como se estivesse
em guerra contra a espécie humana.
É baseado na visão de Locke que os Estados Unidos
entendem que não houve, de sua parte, agressão contra o Vietnã e que ao
contrário, os EUA foi a vítima de agressão. Assim na visão de Washington, a
Guerra do Vietnã foi uma guerra justa e a resistência vietnamita às tropas
estadunidenses era injusta. Os vietnamitas, segundo os EUA, estavam em contra
da lei natural, e por isso estavam em contra da espécie humana e assim os EUA
chamavam para si o direito-dever de atuar como juiz e fazer a guerra em defesa
da espécie humana. A consequência da visão de Locke usada por Washington e suas
tropas foi a naturalidade como crimes de guerra foram praticados pelas forças
armadas dos EUA. Professores
e outros profissionais vietnamitas simpáticos com a guerrilha eram fuzilados
nas ruas em plena luz do dia. Homens, mulheres e crianças foram queimados vivos
com napalm, aldeias inteiras foram bombardeadas e destruídas. Várias foram as
barbáries cometidas pelos EUA no Vietnã, entre elas, uma de grande destaque foi
o massacre de My Lai (1968) onde centenas de civis, em sua maioria mulheres e
crianças foram executados por soldados do exército dos EUA. Este massacre
entrou para a História como o maior massacre de civis em toda a guerra. Durante
a Guerra do Vietnã, 3 milhões de vietnamitas seriam assassinados (destes, 2
milhões eram civis); 2 milhões seriam feridos e outros 300 mil ficariam
desaparecidos.
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Jornal dos EUA denunciando massacre de My Lai. |
Baseado em Locke, Washington negou os direitos mais
básicos de uma população, sejam direitos civis ou direitos humanos. Os
vietnamitas eram exterminados como feras selvagens. Tomando por base, o
Tribunal de Nuremberg e o Tribunal de Tóquio (em especial, o julgamento do
general Tomoyuki Yamashita em Manila), podemos concluir que se fossem aplicados
as bases morais e legais destes tribunais a todos os líderes e burocratas
estadunidenses que provocaram e fizeram a Guerra do Vietnã, eles teriam sido
seguramente condenados. A defesa até que poderia alegar o desconhecimento, ou
seja, que os acusados não sabiam o que estavam fazendo e que haviam obtido os
mais vergonhosos resultados pelos mais inocentes motivos. Porém, alegar falta
de informação não era uma opção já que várias missões políticas e militares dos
EUA, das áreas de inteligência, economia e política estiveram no Vietnã. A
administração de Washington e os militares estavam muito bem informados do que
ocorria e depois do que aconteceu em My Lai, ninguém mais podia alegar
desinformação.
A conduta de guerra e a matriz de responsabilidade
legal e criminal existente já condenavam os EUA que estava obrigado pelos
Princípios de Nuremberg, formulados e baseados no Tribunal de Nuremberg e
respaldados pela ONU posteriormente. Os EUA estavam comprometidos com estes
princípios legalmente, politicamente e moralmente. Os crimes de guerra dos EUA
não ficariam restritos ao Vietnã. Na realidade, toda a Indochina seria de
alguma forma vítima da visão de Locke aplicada por Washington e nesse sentido o
Laos e o Camboja seriam bombardeados. A quantidade de bombas lançadas pelos EUA
em toda a Indochina superaria, em várias vezes, todo o volume de bombas
despejadas em solo europeu durante a Segunda Guerra Mundial.
MAIS DO MESMO NA NICARÁGUA
A atuação dos EUA na Nicarágua combatendo os
sandinistas foi similar ao que foi praticado no Vietnã. Washington declarou seu
direito e obrigação de intervir militarmente na Nicarágua baseados na lei
natural de Locke. Os sandinistas, para os EUA, haviam se levantado contra a
espécie humana e por isso aos sandinistas, foi negado qualquer direito humano. Para
os EUA, os sandinistas eram um câncer a ser extirpado, o que implicava mais uma
vez em aniquilar o adversário. Os atos praticados pelos EUA na Nicarágua foram
condenados pela Corte Internacional de Justiça (CIJ). A CIJ não utilizou o
termo agressão para definir a atuação dos EUA na Nicarágua apenas para não se
meter na jurisdição do Conselho de Segurança das Nações Unidas mas pelo menos
ordenou medidas cautelares indicando que os EUA deveriam terminar com suas
ações que fossem com o objetivo de limitar a entrada e saída dos portos
nicaraguenses e também a colocação de minas. A CIJ também responsabilizou os
EUA pela infração de vários princípios de Direito Internacional e sendo assim
limitou sua sentença à proibição do uso da força e da não intervenção em virtude
do Direito Internacional Clássico refletido no art. 2 (4) da Carta da ONU. Vale
destacar que durante a consideração sobre o envio de bandos armados, grupos
irregulares ou mercenários para executarem atos de força armada contra outro
Estado, a CIJ baseando-se no subparágrafo (g) do art. 3º da Resolução 3314 da Assembleia
Geral da ONU de 1974, conseguiu demonstrar que os EUA haviam alcançado o grau
de ato agressivo. A CIJ também analisou o principal argumento dos EUA de que
suas ações estavam baseadas na legítima defesa coletiva, porém este argumento
cheirava a Locke e não conseguiu convencer a Corte que rechaçou tais
afirmações. A resposta dos EUA à CIJ foi muito “madura”: não acatou sua
condenação; desautorizou a Corte; e renunciou sua participação como membro da Corte,
retirando sua declaração de aceitação da jurisdição obrigatória da CIJ.
Texto: Gutemberg Alves F. Teixeira, colunista e colaborador do Blog Um quê de Marx.
Texto: Gutemberg Alves F. Teixeira, colunista e colaborador do Blog Um quê de Marx.
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