PRIMEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE “O CAPITAL NO SÉCULO XXI”, DE THOMAS PIKETTY. PARTE 1.
Thomas Piketty é um economista francês que se tornou figura de destaque no meio acadêmico internacional com seu livro "O capital no século 21" (2013), no qual defende, através da análise de dados estatísticos, que o capitalismo possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico.
1. Um Esclarecimento:
Este texto não tem maiores pretensões, senão o de antecipar algumas inquietações sobre o tão falado livro do francês Thomas Piketty, “O capital no Século XXI” (1). São três os pontos que, apressadamente, compartilhamos algum tipo de comentário:
a) O autor não rompe com o modo de produção capitalista, pelo contrário, a solução apresentada para a desigualdade provocada pelo sistema capitalista se dá por dentro das regras do jogo capitalista;
b) Há no livro um interessante diálogo com Keynes que questiona a necessidade da “acumulação primitiva” para o surgimento do capitalismo;
c) O modo de pesquisar e de analisar os dados colhidos altera a tradicional metodologia de estudo sobre desigualdade, crescimento econômico e distribuição de riqueza.
E a razão da inquietude é muito simples: por um lado, há um endeusamento do livro, tal como se ele fosse a tábua da salvação para um setor progressista que defende o que poderíamos chamar, despretensiosamente, de neodesenvolvimentismo. Diante de algumas publicações e de notas em redes sociais, o livro de Piketty parece ser “a prova” do acerto de uma política econômica “mais intervencionista por parte do Estado” (2).
Pelo outro lado, o líquido branco e leitoso do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, parece que tomou conta de alguns segmentos sociais que enxergaram no livro de Piketty, ou a continuação do “O Capital”, de Marx, ou “todo o mal a ser varrido do Planeta” (3).
Em quaisquer das hipóteses, é preciso ter a capacidade de ler e submeter à crítica o livro de Piketty. Deste pressuposto e por enquanto, aqueles três pontos nos atormentaram o espírito, de tal maneira que, antes de uma leitura mais acurada do referido livro, eles permitiram os breves comentários a seguir.
2. A Busca Por um Capitalismo com Rosto Humano.
O fosso entre ricos e pobres está crescendo. Este é o centro do Livro “O Capital no século XXI”, de Thomas Piketty. Ele defende a tese de que a desigualdade da distribuição da riqueza no capitalismo é contínua. O retorno do investimento feito pelos grandes capitalistas é maior do que o crescimento da economia, no longo prazo, e do que o aumento da renda oriunda do trabalho. Logo, o autor nos diz (e são apresentados dados e análises) que os ricos donos do capital estão ficando mais ricos. E a riqueza está cada vez mais concentrada em poucas mãos. E assim discorrendo, em última análise, o autor afirma que a democracia está em perigo.
Piketty argumenta o seguinte: Nos últimos 300 anos, a economia mundial cresce anualmente por uma média de 1,6%. Metade disso é devido ao crescimento da população, o outro a partir do progresso tecnológico que aumenta a produtividade.
“De acordo com as melhores estimativas disponíveis, a taxa de crescimento do PIB mundial foi, em média, de 1,6% a ano entre 1700 e 2012, sendo 0,8% disso proveniente da expansão populacional e 0,8% derivado do aumento da produção por habitante” (p.78).
Historicamente, a taxa de crescimento está mais perto de 4%, quando se considera o lucro antes dos impostos. Para imóveis e terrenos, geralmente, é mais do que 3%. Para os produtos financeiros, ela é mais próxima de 6% ou 7% - tão mais elevados do que o crescimento econômico global (p.58).
É possível extrair do livro que, a situação atual coloca a humanidade mais próxima do ponto de partida do surgimento do capitalismo. Isto leva a desigualdade de riqueza e pode encolher a então designada classe média (4). Principalmente porque é mais fácil atingir um alto retorno financeiro sobre os mercados financeiros globais, se você já tem uma grande fortuna, do que se você investir de forma ampla.
Nada obstante, Piketty defende “a saída” por dentro do capitalismo, em especial, por meio de distribuição de renda pelo direito (p.466); pela reestruturação do imposto de renda de modo mais progressivo (p.480) e criação de um imposto mundial sobre o capital, com caráter fiscal (arrecadação) e extrafiscal (controle social, via Estado) (p. 501).
Portanto, ao lado da constatação da permanência da desigualdade; há uma estranha resposta a essa perene desigualdade – que ele retratou muito bem no contexto dos séculos XVIII ao XX, alterando o modo de pesquisar e analisar os dados sobre desigualdade, inclusive, abalando (com dados muito bem pesquisados e trabalhados) a tradicional concepção de que a riqueza produzida ao longo do período capitalista foi distribuída. Em termos pouco cuidadoso: o trabalhador do final do século XX “é mais rico” do que o trabalhador do século XIX, como por exemplo.
Logo, é possível extrair a partir de Piketty que a promessa da revolução francesa provou ser uma ilusão, inclusive em termos de igualdade. E uma grande parte da pesquisa dele é identificar o que “não funcionou”, na medida em que os dados de 1914 confrontados com o mesmo grau de concentração de riqueza de 1789 e que hoje, depois dos “choques do século XX”, apontam basicamente para um ponto de aproximação dos mesmos níveis de desigualdade.
Apesar dessa constatação, a resposta à sina “desigualdade social” por parte do autor é cometida, pois dentro do espectro de uma crítica social, fica claro que o argumento dele nunca é anticapitalista.
Piketty nos diz que “(...) a renda é uma realidade da economia de mercado e da propriedade privada do capital. O fato de o capital fundiário ter se tornado imobiliário, industrial e financeiro não mudou nada dessa realidade profunda. Imagina-se às vezes que a lógica do desenvolvimento econômico consistiria em tornar cada vez menos efetiva a distinção entre trabalho e capital. Na realidade, é exatamente o contrário: a sofisticação crescente do mercado de capital e da intermediação financeira visa a separar de maneira cada vez mais acentuada a identidade do proprietário e do gestor e, assim, a renda pura do capital e a do trabalho. A racionalidade econômica e tecnológica nada tem a ver com a racionalidade democrática. O iluminismo engendrou a democracia, e é muito comum pensar que a economia acompanharia essa lógica democrática naturalmente, como que por encantamento. Ora, a democracia real e a justiça social exigem instituições específicas, que não são apenas as do mercado e também não podem ser reduzidas às instituições parlamentares e democráticas formais. Resumindo: a força da divergência fundamental que enfatizamos neste livro, que pode ser resumida pela desigualdade r > g, nada tem a ver com uma imperfeição dos mercados e não será resolvida por mercados cada vez mais livres e competitivos. A ideia de que a livre concorrência permite pôr fim à sociedade de herança e conduz a um mundo cada vez mais meritocrático é uma ilusão perigosa. O advento do sufrágio universal e a extinção do voto censitário (que no século XIX restringia o direito de voto às pessoas que detinham riqueza suficiente, em geral o 1% ou os 2% mais ricos em patrimônio nas sociedades francesas e britânicas dos anos 1820-1840, ou seja, o equivalente aos contribuintes sujeitos ao imposto sobre fortunas na França dos anos 2000-2010) acabaram com a dominação política legal dos detentores de patrimônio, mas não aboliram as forças econômicas capazes de produzir uma sociedade de rentistas”. (p.413)
E arremata: “Para regular o capitalismo patrimonial globalizado do século XXI, não basta repensar o modelo fiscal e social do século XX e adaptá-lo ao mundo de hoje. Uma reatualização adequada do programa social-democrata e fiscal-liberal do século passado é indispensável, como tentamos mostrar nos Capítulos 13 e 14 ao nos dedicarmos a duas instituições fundamentais inventadas no século XX que devem continuar desempenhando um papel central no futuro: o Estado social e o imposto progressivo sobre a renda. Contudo, para que a democracia possa retomar o controle do capitalismo financeiro globalizado neste novo século, também é necessário inventar novos instrumentos, adaptados aos desafios de hoje. O instrumento ideal seria um imposto mundial e progressivo sobre o capital, acompanhado de uma grande transparência financeira internacional. Essa instituição permitiria evitar uma espiral desigualadora sem fim e regular de forma eficaz a inquietante dinâmica da concentração mundial da riqueza”. (p.501)
Em alguns momentos Piketty parece que vai ao encontro da plena democratização da esfera econômica – que só se dá mediante a efetiva expropriação dos meios de produção. Mas ele enfraquece seu argumento ao manter a própria estrutura do capitalismo, centrado na apropriação dos meios de produção. O exemplo abaixo é bastante elucidativo:
“(...) os balanços publicados pela empresa Lonmin, que é dona da mina gigante de platina de Marikana onde 34 grevistas foram mortos a tiros em agosto de 2012, não permitem nem o cálculo preciso da distribuição de riqueza produzida entre lucros e salários. Aliás, essa é uma característica geral dos balanços publicados pelas empresas em todo o mundo: os dados são reagrupados em categorias estatísticas muito amplas, revelando o mínimo possível sobre as questões reais, ou melhor, reservando as informações verdadeiras para os investidores. Podemos afirmar que os assalariados e seus representantes não estão suficientemente a par das realidades econômicas da empresa. Sem uma verdadeira transparência contábil e financeira, sem informação partilhada, não pode haver democracia econômica. Por outro lado, sem direitos concretos de intervenção nas decisões das empresas (como os direitos de voto para os funcionários nos conselhos administrativos), a transparência não tem grande utilidade. A informação deve nutrir as instituições fiscais e democráticas; ela não é um fim em si. Para que a democracia venha um dia a retomar o controle do capitalismo, é necessário, em primeiro lugar, partir do princípio de que as formas genuínas de democracia e do capital estão e sempre estarão para ser reinventadas”. (p.554).
E tudo isso é coerente com a premissa formulada pelo autor, mediante certa exposição pessoal: “Pertenço a uma geração que fez dezoito anos em 1989, bicentenário da Revolução Francesa e, também, ano da queda do Muro de Berlim. Minha geração é, ainda, a que chegou à idade adulta ouvindo as notícias do desmoronamento das ditaduras comunistas e que jamais sentiu qualquer ternura ou nostalgia por esses regimes ou pela União Soviética. Fui vacinado bem cedo contra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo e que se recusam a se render aos argumentos intelectuais que permitiriam deixar a retórica gasta para trás. Não me interessa denunciar a desigualdade ou o capitalismo enquanto tal — sobretudo porque a desigualdade social não é um problema em si, desde que se justifique, desde que seja ‘fundada na utilidade comum’, como proclama o artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. (Embora essa definição de justiça social, ainda que sedutora, seja imprecisa, está ancorada na história. Vamos adotá-la por ora; voltarei a esse assunto mais tarde.) O que me interessa é contribuir, pouco importa quão modestamente, para o debate sobre a organização social, as instituições e as políticas públicas que ajudam a promover uma sociedade mais justa. Para mim, isso só tem validade se alcançado no contexto do estado de direito, com regras conhecidas e aplicáveis a todos e que possam ser debatidas de maneira democrática”. (p.37)
3. Inquietações deste leitor e Contradições do Autor
Minhas inquietações pretendem, centralmente, chegar ao ponto de entender os termos daquela proposta de Piketty, chamada de “democratização e transparência do mercado”, no caso, via controle racional do capital.
Assim é que haverá de se ter uma reflexão sobre a proposta de mera regulamentação do capital, que o autor reconhece que “ainda deve ser construída”. Evidentemente que não é objeto da inquietação as críticas as propostas regulatórias do capital (isto não faria o menor sentido). O questionamento é no sentido de responder a pergunta: em que se funda a proposta de regulação do mercado?
Ou, desdobrando a pergunta: nos termos em que são concebidas as propostas de regulação do capital por Piketty, tem tal proposta como se pôr de pé, pois dotada de consistência e de suporte político ou jurídico e econômico para ser sustentável?
Encerra ela alguma possibilidade de articular-se com passos reais, profundos e decisivos no sentido de superar a gravíssima situação em que se encontra o Estado contemporâneo? E pode-se pensar no Brasil ou em quaisquer dos BRICS.
As propostas apresentadas para solucionar esses “fatores da crise” são, prioritariamente, as formulações do tipo: “devemos mudar a pauta da economia. Devemos colocar a questão social no debate sobre a economia, de modo que o capital esteja a serviço da sociedade e não o contrário, como vem acontecendo”.
Qual seria o comportamento do poderoso capital que controla o crédito, a indústria e o grande comércio, diante da possibilidade de que o Estado, que ele impôs com ajuda de países desenvolvidos, cujos governos estão a seu serviço, o enfraquecimento, agora busque “regular e controlar” parte de suas frações?
Em outras palavras: em troca de quais vantagens aceitarão um pacto desfavorável ao capital? Aqui fica um problema: quem vai disciplinar quem? Como se dará um planejamento que se pretenda “regular” o mercado se o vetor de orientação (o mecanismo de planejamento) é o lucro?
Onde vai residir a força de um Estado que se encontra refém e completamente atravessado pela lógica e pelos interesses concretos do capital?
A questão aqui é procurar um fundamento sólido e sustentabilidade histórica para quaisquer das propostas de regulamentação do capital apresentadas por Piketty.
Continua com os itens 2 e 3.
Você pode ver também
Aula inaugural com o profº José Paulo Neto, "Marx depois de Piketty".
Aula inaugural com o profº José Paulo Neto, "Marx depois de Piketty".
Texto: Helio Rodrigues, colaborador do Blog Um quê de Marx e autor e colunista do Sociedade, Poder e Direito na contramão.
Referências
(1) PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. 1º Ed. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014. Trad. Mônica B. de Bolle.
(2) Sobre o Livro de Piketty ser favorável ao “neodesenvolvimentismo”. Vide Revista Carta Capital. Disponível em < http://www.cartacapital.com.br/revista/803/por-que-piketty-incomoda-2769.html >. Acesso em 31 abr. 2015.
Ou Waldimir Pomar, em Piketty e as Hipocrisias Conceituais. Disponível em < http://www.desenvolvimentistas.com.br/blog/blog/2014/12/15/piketty-e-as-hipocrisias-conceituais/ >. Acesso em 31.abr. 2015.
Ou ainda, Blog de Maria Clara R.M. Prado Disponível em < http://www.cincomunicacao.com.br/piketty-e-a-desigualdade/ >. Acesso em 31.abr. 2015.
(3) Sobre o Livro de Piketty ser “maldito”: vide programa Roda Viva. Disponível em < http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/videos-veja-entrevista/o-economista-thomas-piketty-e-o-entrevistado-do-roda-viva-desta-segunda/ >. Acesso em 31.abr.2015.
Sobre o Livro de Piketty ser “comunista”, vide Blog Esquerda Marxista, “O Capital, de Thomas Piketty, e o Espectro da desigualdade”. Disponível em http://www.marxismo.org.br/content/o-capital-de-thomas-piketty-e-o-espectro-da-desigualdade >. Acesso em 31 abr.2015.
Ou Blog Pragmatismo Político. Disponível em < http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/quem-tem-medo-de-thomas-piketty.html > Acesso em 31 abr2015
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