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Élisée Reclus e a aproximação do pensamento marxista: "O homem é a alma da terra" -DO SENTIMENTO DA NATUREZA À SUA APROPRIAÇÃO CAPITALISTA

Hoje o tema da postagem é de cunho geográfico, mas não deixa de ser um conteúdo social, longe disso. Este é um artigo da recente revista Geographia Opportuno Tempore,  produzida por alunos e professores da Universidade Estadual de Londrina- Paraná. 
Considero uma leitura fundamental para compreender a natureza, o espaço e as relações do homem com ambos. Somos seres sociais em contato imediato com a natureza, portanto somos o principal agente do meio. Este artigo vem com a reflexão e mudança do paradigma que visa olhar para a natureza como algo desvinculado da vida humana. Lembrando que o artigo não está em sua íntegra, apenas foi selecionadas algumas partes, que enfatizam as ideias de Élisée Reclus "próximas" da teoria marxista, o materialismo histórico, dialético. Para ler o artigo completo no final deste texto está a fonte e o local para download. Boa leitura.

Talvez o que seja algo surpreendente Élisée Reclus ser um anarquista com ideias (em relação a este tema) semelhantes a concepção marxista. Élisée Reclus (1830-1905) foi um geógrafo e anarquista francês. Sua obra caracterizou-se, principalmente, por se diferenciar profundamente da maioria dos pensadores da Geografia de sua época. Apesar de realizar um trabalho de caráter positivista e de se opor ao marxismo, utilizou-se de algumas de suas categorias, como a luta de classes.
O período atual, caracterizado por uma sociedade de consumo, coloca os objetos e as mercadorias como possibilidades de mediação entre o homem e a natureza. Objetos e mercadorias assumem as mais variadas formas que passam pelo creme dental com sabor natural; pelo papel higiênico natural (sem perfume) ou com perfume natural (de flores); pelo protetor de tela do computador com suas árvores de folhas vermelhas ou os peixinhos nadando; pelos lugares turísticos, onde se pode passear por praias desertas ou pelas trilhas ecológicas na mata e, pelos condomínios de alto padrão nas cidades. Para Ítalo Calvino (1994) a natureza é cada vez mais falsificada e está comprometida com os interesses do capital. Confirmam-se as ideias de Marx de uma a natureza capitalizada e mercantilizada, com seus consumidores e clientes, mercadoria percorrida, comprada e consumida, literal e metaforicamente, símbolo, imagem, ícone, poder. Observa-se um modelo de produção de mercadorias associadas a uma economia capitalista, criando um mundo de objetos prenhes de intencionalidades e significações. Todo um mundo de objetos passa a ser produzido seguindo os ditames de uma ideologia, mais ou menos perceptível aos olhos incautos, como o uso da ideia de natureza pelos empreendimentos imobiliários urbanos (HENRIQUE, 2009).
A reificação da natureza enquanto um objeto a se tornar mercadoria 'elitizada', necessitou de formas sofisticadas de conhecimento para que se pudesse manipular o mundo natural segundo os propósitos humanos e, até mesmo, para explorá-la no mercado de trocas e vender suas qualidades de acordo com um ‘design’, um desígnio, uma vontade humana. O avanço técnico transforma a Natureza em algo cada vez mais social do que natural. A ação humana sobre a natureza permite ao homem produzir sua história. O processo histórico - social e não natural - controla, incorpora e produz naturezas, enquadrando-as nas qualidades humanas.

A modificação do mundo natural em território humano, legitimada pelas necessidades, requerimentos, desejos e esperanças dos homens, pode ser vista tanto como um projeto de emancipação coletiva, como pela realização do conforto na vida individual.  Do sentimento da natureza à sua apropriação capitalista: a sociedade e a natureza nas contribuições de Elseé Réclus.

A natureza carrega consigo um peso simbólico e ao mesmo tempo contraditório e complexo, sendo entendida diferentemente por diversas formas de pensamentos e ideologias. A multiplicidade de interpretações da Natureza, enquanto ideia, conceito ou palavra, advém de uma constatação: toda a história social do homem, toda sua ação e produção de seu espaço, deu-se a partir de sua relação com a natureza.
Nesse sentido, buscamos resgatar as contribuições de Élisée Reclus para o entendimento da construção do conhecimento sobre a natureza e como a ideia de natureza apresenta-se plena de contradições e conflitos ao longo da história da produção do espaço e do pensamento geográfico, indo além da simplificação através da substituição da natureza pelo meio ambiente.
As relações entre os homens, suas sociedades e as naturezas na superfície da terra, produzindo o espaço geográfico, são mediadas pelas técnicas e pela cultura. Élisée Reclus (1874) escreveu que a terra é o território do homem onde ele pode até produzir naturezas. A produção do espaço geográfico como um conjunto de objetos e ações, é a consequência da substituição de um meio natural por um meio geográfico, introduzindo no espaço, anteriormente uma physis, novas formas e conteúdos. Assim, o homem aumentou seu conhecimento na mesma proporção que ele modificou a natureza e sua própria ideia sobre ela. O ideário do homem, de acordo com seus desejos e sistema de valores, possibilita a construção de uma natureza, que irá se constituir para responder a um sentimento com valor estético. Adornar e melhorar a natureza são características da civilização e da cultura que separaram o homem culto e civilizado daquele bárbaro que apenas destrói a terra, que apenas desfigura a face da natureza sem cuidado estético. Esta condição estética da natureza humanizada pode ser observada, por exemplo, nos grandes jardins que tomaram lugar na Europa desde o Renascimento. Mesmo nos jardins onde a natureza já se encontrava enclausurada por formas geométricas regulares, ainda era possível sua melhoria, sua adequação ao gosto estético humano. Nos jardins do Imperador Yang-Ty, tem-se o hábito de repor no lugar das flores e folhas que caem das árvores, uma folhagem artificial e flores feitas de seda, posteriormente impregnadas com perfume tornando a ilusão mais completa. 
O século XIX será marcado no âmbito das ciências pela crescente demarcação
dos campos de atuação das disciplinas acadêmicas, com uma acelerada especialização das mesmas. Na Geografia assistimos ao mesmo processo, com as contribuições dos geógrafos europeus à sua sistematização e consolidação, em um momento de grandes transformações no espaço geográfico (ou meio geográfico), com a rápida industrialização do mundo ocidental, processo este que implicava numa forte substituição dos meios (espaços) naturais pelos meios (espaços) humanizados. Entender e construir um sistema de ideias sobre a natureza, uma nova geografia da natureza, onde a explicação geográfica desta natureza, cada vez mais incorporada à vida social e usurpada pelos novos processos de produção capitalista, era o fundamento para o pensamento de Élisée Reclus.
As tentativas e lutas constantes entre o homem e a natureza, desde as épocas primitivas, para controle ou mesmo erradicação da carestia e dos azares e obstáculos naturais, nos levou a nos apropriamos, segundo Reclus (1886), dos solos sobre os quais a própria natureza caminhava. O homem tem feito seu o solo da terra através da ciência, quando começou a adaptá-lo para seu uso e cultivo.
As tentativas e lutas constantes entre o homem e a natureza, desde as épocas primitivas, para controle ou mesmo erradicação da carestia e dos azares e obstáculos naturais, nos levou a nos apropriamos, segundo Reclus (1886), dos solos sobre os quais a própria natureza caminhava. O homem tem feito seu o solo da terra através da ciência, quando começou a adaptá-lo para seu uso e cultivo.
É famosa a afirmação de Reclus, no prefácio de L'homme et la Terre, o homem é a natureza adquirindo consciência de si própria ('homme est la nature prenant consicence d'elle même).
Em 1874, no mesmo ano que George Marsh publica seu livro , Reclus escreve o texto ‘De l'action humaine sur la géographie physique. L'homme et la nature.’ (Da ação humana sobre a geografia física. O homem e a natureza). Neste texto Reclus (2002:34) afirma que o homem é a alma da terra. O autor escreve ainda que à medida que as pessoas desenvolveram sua inteligência e sua liberdade elas passaram a reagir sobre a natureza exterior não sendo mais passivamente subjugados. No texto, ‘Géographie Générale’ (Geografia Geral), de 1872, Reclus coloca de maneira incisiva que estudar a superfície da terra é necessariamente realizar um estudo da humanidade, uma ideia muito próxima daquelas trabalhadas por Marx. A concepção de Reclus ‘Telle terre, tel peuple’ (Tal terra, tal povo), não representava uma visão determinista do ambiente, mesmo quando os homens primitivos se moldaram o seu modo de vida dentro de uma dependência absoluta da natureza – nas áreas costeiras os homens pescavam e nas áreas florestadas caçavam. Mas, desde então ele aprenderam a superar o condições e limitações que a natureza local colocava, e com estas mudanças no meio, decorrência da revolta do homem contra as duras necessidades, começa a geografia propriamente dita.
Reclus considera a natureza como uma mãe beneficente que nutre e alimenta, sem o ideal romântico de harmonia, pois até as plantas e animais lutam por seu território. Assim, não seria diferente para homem, que segundo Reclus (1886), está incessantemente em conflito com o globo sobre o qual ele habita. (...) O homem, tem gradualmente emancipado a sim mesmo, e tendo se esforçado para adaptar as forças da terra para o seu uso, ele tem feito dela sua própria. (...) Por um longo período nós éramos nada mais do que produtos inconscientes da natureza, mas nós temos nos tornado crescentemente agentes ativos sobre a história da natureza.

A produção de ideias de natureza também será fortemente influenciada pelas obras de pintores e fotógrafos, que irão criar um padrão estético de representação da natureza, a partir de viagens ao redor do mundo ou de relatos de outros viajantes. De acordo com Reclus (2002) passamos a ‘frequentar’ mais e mais intimamente a natureza graças as obras de arte que reportavam as memoráveis viagens; todos os homens cultos podem agora compreender a fisionomia de diversas regiões do globo.









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Referência: Geographia Opportuno Tempore, Londrina, v.1, n. 1, p. 20-33, jan./jun. 2014. Artigo: Do sentimento da natureza à sua apropriação capitalista: a sociedade e a natureza nas contribuições de Éliseé ReclusWendel Henrique.
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