Élisée Reclus e a aproximação do pensamento marxista: "O homem é a alma da terra" -DO SENTIMENTO DA NATUREZA À SUA APROPRIAÇÃO CAPITALISTA
Hoje o tema da postagem é de cunho geográfico, mas não deixa de ser um conteúdo social, longe disso. Este é um artigo da recente revista Geographia Opportuno Tempore, produzida por alunos e professores da Universidade Estadual de Londrina- Paraná.
Considero uma leitura fundamental para compreender a natureza, o espaço e as relações do homem com ambos. Somos seres sociais em contato imediato com a natureza, portanto somos o principal agente do meio. Este artigo vem com a reflexão e mudança do paradigma que visa olhar para a natureza como algo desvinculado da vida humana. Lembrando que o artigo não está em sua íntegra, apenas foi selecionadas algumas partes, que enfatizam as ideias de Élisée Reclus "próximas" da teoria marxista, o materialismo histórico, dialético. Para ler o artigo completo no final deste texto está a fonte e o local para download. Boa leitura.
O período atual, caracterizado por uma
sociedade de consumo, coloca os objetos e as mercadorias como possibilidades de
mediação entre o homem e a natureza. Objetos e mercadorias assumem as mais
variadas formas que passam pelo creme dental com sabor natural; pelo papel
higiênico natural (sem perfume) ou com perfume natural (de flores); pelo protetor
de tela do computador com suas árvores de folhas vermelhas ou os peixinhos nadando;
pelos lugares turísticos, onde se pode passear por praias desertas ou pelas
trilhas ecológicas na mata e, pelos condomínios de alto padrão nas cidades. Para
Ítalo Calvino (1994) a natureza é cada vez mais falsificada e está comprometida
com os interesses do capital. Confirmam-se as ideias de Marx de uma a natureza
capitalizada e mercantilizada, com seus consumidores e clientes, mercadoria percorrida,
comprada e consumida, literal e metaforicamente, símbolo, imagem, ícone, poder.
Observa-se um modelo de produção de mercadorias associadas a uma economia capitalista,
criando um mundo de objetos prenhes de intencionalidades e significações. Todo
um mundo de objetos passa a ser produzido seguindo os ditames de uma ideologia,
mais ou menos perceptível aos olhos incautos, como o uso da ideia de natureza pelos
empreendimentos imobiliários urbanos (HENRIQUE, 2009).
A reificação da natureza enquanto um
objeto a se tornar mercadoria 'elitizada', necessitou de formas sofisticadas de
conhecimento para que se pudesse manipular o mundo natural segundo os
propósitos humanos e, até mesmo, para explorá-la no mercado de trocas e vender
suas qualidades de acordo com um ‘design’, um desígnio, uma vontade humana. O
avanço técnico transforma a Natureza em algo cada vez mais social do que natural.
A ação humana sobre a natureza permite ao homem produzir sua história. O processo
histórico - social e não natural - controla, incorpora e produz naturezas, enquadrando-as
nas qualidades humanas.
A modificação do mundo natural em
território humano, legitimada pelas necessidades, requerimentos, desejos e
esperanças dos homens, pode ser vista tanto como um projeto de emancipação
coletiva, como pela realização do conforto na vida individual. Do sentimento da natureza à sua apropriação
capitalista: a sociedade e a natureza nas contribuições de Elseé Réclus.
A natureza carrega consigo um peso
simbólico e ao mesmo tempo contraditório e complexo, sendo entendida
diferentemente por diversas formas de pensamentos e ideologias. A
multiplicidade de interpretações da Natureza, enquanto ideia, conceito ou palavra,
advém de uma constatação: toda a história social do homem, toda sua ação e produção
de seu espaço, deu-se a partir de sua relação com a natureza.
Nesse sentido, buscamos resgatar as
contribuições de Élisée Reclus para o entendimento da construção do
conhecimento sobre a natureza e como a ideia de natureza apresenta-se plena de
contradições e conflitos ao longo da história da produção do espaço e do
pensamento geográfico, indo além da simplificação através da substituição da
natureza pelo meio ambiente.
As relações entre os homens, suas
sociedades e as naturezas na superfície da terra, produzindo o espaço
geográfico, são mediadas pelas técnicas e pela cultura. Élisée Reclus (1874)
escreveu que a terra é o território do homem onde ele pode até produzir naturezas.
A produção do espaço geográfico como um conjunto de objetos e ações, é a consequência
da substituição de um meio natural por um meio geográfico, introduzindo no espaço,
anteriormente uma physis, novas formas e conteúdos. Assim, o homem aumentou seu
conhecimento na mesma proporção que ele modificou a natureza e sua própria ideia
sobre ela. O ideário do homem, de acordo com seus desejos e sistema de valores,
possibilita a construção de uma natureza, que irá se constituir para responder
a um sentimento com valor estético. Adornar e melhorar a natureza são
características da civilização e da cultura que separaram o homem culto e
civilizado daquele bárbaro que apenas destrói a terra, que apenas desfigura a
face da natureza sem cuidado estético. Esta condição estética da natureza
humanizada pode ser observada, por exemplo, nos grandes jardins que tomaram
lugar na Europa desde o Renascimento. Mesmo nos jardins onde a natureza já se encontrava
enclausurada por formas geométricas regulares, ainda era possível sua melhoria,
sua adequação ao gosto estético humano. Nos jardins do Imperador Yang-Ty,
tem-se o hábito de repor no lugar das flores e folhas que caem das árvores, uma
folhagem artificial e flores feitas de seda, posteriormente impregnadas com
perfume tornando a ilusão mais completa.
O
século XIX será marcado no âmbito das ciências pela crescente demarcação
dos
campos de atuação das disciplinas acadêmicas, com uma acelerada especialização
das mesmas. Na Geografia assistimos ao mesmo processo, com as contribuições dos
geógrafos europeus à sua sistematização e consolidação, em um momento de
grandes transformações no espaço geográfico (ou meio geográfico), com a rápida
industrialização do mundo ocidental,
processo este que implicava numa forte substituição dos meios (espaços)
naturais pelos meios (espaços) humanizados. Entender e construir um sistema de
ideias sobre a natureza, uma nova geografia da natureza, onde a explicação
geográfica desta natureza, cada vez mais incorporada à vida social e usurpada
pelos novos processos de produção capitalista, era o fundamento para o
pensamento de Élisée Reclus.
As tentativas e lutas
constantes entre o homem e a natureza, desde as épocas primitivas, para
controle ou mesmo erradicação da carestia e dos azares e obstáculos naturais, nos
levou a nos apropriamos, segundo Reclus (1886), dos solos sobre os quais a
própria natureza caminhava. O homem tem feito seu o solo da terra através da
ciência, quando começou a adaptá-lo para seu uso e cultivo.
As tentativas e lutas
constantes entre o homem e a natureza, desde as épocas primitivas, para
controle ou mesmo erradicação da carestia e dos azares e obstáculos naturais, nos
levou a nos apropriamos, segundo Reclus (1886), dos solos sobre os quais a
própria natureza caminhava. O homem tem feito seu o solo da terra através da
ciência, quando começou a adaptá-lo para seu uso e cultivo.
É famosa a afirmação
de Reclus, no prefácio de L'homme et la Terre, o homem é a natureza adquirindo
consciência de si própria ('homme est la nature prenant consicence d'elle
même).
Em 1874, no mesmo ano
que George Marsh publica seu livro , Reclus escreve o texto ‘De l'action
humaine sur la géographie physique. L'homme et la nature.’ (Da ação humana
sobre a geografia física. O homem e a natureza). Neste texto Reclus (2002:34)
afirma que o homem é a alma da terra. O autor escreve ainda que à medida que as
pessoas desenvolveram sua inteligência e sua liberdade elas passaram a reagir
sobre a natureza exterior não sendo mais passivamente subjugados. No texto,
‘Géographie Générale’ (Geografia Geral), de 1872, Reclus coloca de maneira
incisiva que estudar a superfície da terra é necessariamente realizar um estudo
da humanidade, uma ideia muito próxima daquelas trabalhadas por Marx. A
concepção de Reclus ‘Telle terre, tel peuple’ (Tal terra, tal povo), não
representava uma visão determinista do ambiente, mesmo quando os homens
primitivos se moldaram o seu modo de vida dentro de uma dependência absoluta da
natureza – nas áreas costeiras os homens pescavam e nas áreas florestadas caçavam.
Mas, desde então ele aprenderam a superar o condições e limitações que a
natureza local colocava, e com estas mudanças no meio, decorrência da revolta
do homem contra as duras necessidades, começa a geografia propriamente dita.
Reclus considera a
natureza como uma mãe beneficente que nutre e alimenta, sem o ideal romântico
de harmonia, pois até as plantas e animais lutam por seu território. Assim, não
seria diferente para homem, que segundo Reclus (1886), está incessantemente em
conflito com o globo sobre o qual ele habita. (...) O homem, tem gradualmente emancipado
a sim mesmo, e tendo se esforçado para adaptar as forças da terra para o seu uso,
ele tem feito dela sua própria. (...) Por um longo período nós éramos nada mais
do que produtos inconscientes da natureza, mas nós temos nos tornado
crescentemente agentes ativos sobre a história da natureza.
A produção de ideias
de natureza também será fortemente influenciada pelas obras de pintores e
fotógrafos, que irão criar um padrão estético de representação da natureza, a
partir de viagens ao redor do mundo ou de relatos de outros viajantes. De
acordo com Reclus (2002) passamos a ‘frequentar’ mais e mais intimamente a
natureza graças as obras de arte que reportavam as memoráveis viagens; todos os
homens cultos podem agora compreender a fisionomia de diversas regiões do
globo.
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