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O DISFARCE ÉTICO E JURÍDICO AO SERVIÇO DE INTERVENÇÕES: Seriam os direitos humanos fruto da ideologia burguesa?

DIREITOS HUMANOS, DISFARCE ÉTICO E JURÍDICO AO SERVIÇO DE INTERVENÇÕES NADA HUMANITÁRIAS


Se pretendemos utilizar a expressão direitos humanos com alguma precisão, é necessário aceitar que tal conceito e a realidade que defende apenas é compreensível dentro de um determinado tipo de relação regida pela liberdade e igualdade, apenas formal, entre os humanos, somente produzida na modernidade, dentro do sistema social burguês.
Existem diferentes interpretações diversas dos direitos humanos e se poderia dizer uma certa perda de sentido do seu conceito desde o momento em que está emotivamente carregado e favorável com a noção de todas as ideologias políticas que parecem concordar que os direitos humanos constituem a base fundamental da ideia de justiça. Nesse sentido, a crítica marxista aos direitos humanos se trata do conjunto de questionamentos elaborados por Karl Marx ao discurso ideológico dos direitos humanos[1]. As relações entre o marxismo e os direitos humanos possuem interesse prático, político e também teórico. A razão é que em Marx, existem uma série de conceitos básicos como o conceito da alienação, da ideologia, ditadura do proletariado, necessidade do socialismo e extinção do Estado. Estes conceitos em Marx fazem com que este seja crítico em relação aos termos justiça, dever e moral. Assim que para Marx, o lema: “liberdade, igualdade, fraternidade”; apenas significam em realidade: infantaria, cavalaria, artilharia[2].
Uma das principais críticas de Marx ao discurso dos direitos humanos e o seu carácter ideológico inseridos no sistema capitalista é que o capitalismo implica a segmentação dos seres humanos em duas esferas, uma esfera privada (burguesa) e outra esfera política própria da cidadania. A primeira esfera (privada) é defendida de forma radical e se encontra determinada pelas relações de poder e a distribuição dos meios de produção; a outra esfera (política) é considerada como ideologia, discurso metafísico universalista e formal, encaminhado a encobrir as relações assimétricas de poder e da desigualdade própria da sociedade burguesa. Desta maneira, o Estado que pretende aparentemente a universalidade, é um instrumento para dar renda solta aos interesses privados na sociedade, essa é a razão de ser da separação Estado e sociedade civil. Marx considera que é impossível que o discurso legal, inclusive aquele que faz referência aos direitos humanos, tenha um carácter emancipatório ou contra hegemônico[3].
Pasukanis, um dos mais importantes teóricos marxistas do direito, interpretava os direitos humanos como uma ideologia de caráter burguês e capitalista. A ideia de que todos os homens são juridicamente livres e iguais não é outra coisa que uma exigência da sociedade burguesa capitalista, baseada nas relações entre homens no intercâmbio de mercadorias[4].
Marx denuncia as pretensões de universalidade e atemporalidade que adota o discurso dos direitos humanos que pretende fazer parecer que os valores da sociedade burguesa não correspondem a um tipo de sociedade específica que surgiu em um momento determinado da História, mas sim uma manifestação da uma “natureza humana”. De acordo com Marx, o conceito de natureza humana que fundamenta os direitos, concebe os indivíduos como seres egoístas e isolados; postulados fundamentais para o desenvolvimento da ordem burguesa; parte daí que a propriedade, entendida como a faculdade para o exercício de condutas egoístas, seja compreendida como o desenvolvimento da liberdade, entendida como a excisão do homem em relação a sociedade; a partir disso, Marx defende que na sociedade burguesa a liberdade não considera como possibilidade de realização humana mas sim como limitação. Marx entende as revoluções burguesas como emancipação dos cidadãos (burgueses) mas não da humanidade, fato que fica plasmado nas declarações de direitos que distinguem os direitos do homem do cidadão[5].
Marx critica o discurso dos direitos humanos como um disfarce ético e jurídico que contribui para a institucionalização material da uni dimensionalidade e mercantilização das relações humanas, que além disso cumpre a função de neutralizar as demandas sociais ao coloca-las imersas na ideia abstrata de igualdade que encobre a realidade, baixo a qual coexistem formas de discriminação, de desigualdade material e exploração. De acordo com isso, a emancipação humana não é possível mediante a defesa do discurso dos direitos humanos, somente se pode lograr se existe uma reunificação das dimensões do ser humano, divididas na sociedade capitalista, onde a força social se corresponda com a ideia de unidade entre Estado e sociedade civil[6].

Os direitos humanos também podem ser tão reais quanto a situação do povo palestino na atual realidade. "Não pode haver igualdade real, sendo que uma classe continua a explorar a outra"- Crítica de Lenin acerca dos argumentos de Kautsky sobre a existência da igualdade formal.
A crítica marxista aos direitos humanos é de grande valor em todos os seus aspectos. Permite interpretações por vezes diferentes e opostas. Um exemplo seria a discussão entre Lênin e Kautsky, no final da Segunda Internacional, ao tratarem do problema da relação da democracia e do socialismo de formas distintas. Enquanto Kautsky se apoiava nos últimos escritos de Engels: em Crítica do Programa de Erfurt, de 1891, que defendia a possibilidade de uma via pacífica ao socialismo, onde a representação popular concentra em suas mãos todo o poder, onde se pode fazer pela via constitucional tudo o que se queira, sempre contando com a maioria do povo[7], nas repúblicas democráticas; Em sua “Introdução”, em A luta de classes na França de 1848 a 1850, de Marx, Engels fazia apologia ao sufrágio universal que na sua opinião se convertera de “meio de engano” em “instrumento de emancipação” da classe trabalhadora[8]. Vale lembrar, que esta atitude de Engels não lhe impedia de seguir mantendo uma concepção crítica e negativa do Estado onde este não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na república democrática como na monarquia[9]. Os que interpretam a necessária conexão do socialismo com a democracia e o socialismo como o desenvolvimento e aprofundamento dos direitos humanos do liberalismo são hoje dominantes no pensamento marxista dos países ocidentais. Lênin respondia que como todo “democrata burguês”, Kautsky confundia igualdade real com igualdade formal. Para Lênin era impossível haver igualdade real enquanto exista uma classe explorando outra.
Como podemos falar de igualdade real entre patrão e empregado dentro do capitalismo? Sendo a desigualdade uma imposição para a própria reprodução sócio metabólica do capitalismo? Portanto dentro do capitalismo só pode haver espaço para uma igualdade formal e não real. O mesmo se aplica nos direitos humanos que primam pela igualdade formal e ignoram ou omitem a igualdade real.




SOBRE AS INTERVENÇÕES E O DISCURSO DE "IMPLANTAR A DEMOCRACIA"


A guerra civil na Síria, Iraque, Ucrânia e o massacre de palestinos em Gaza desmascaram a pregação ocidental dos direitos humanos que apenas são defendidos quando as vítimas são os protegidos do sistema de manutenção de poder ocidental. Falam de direitos humanos somente para aliados e aos inimigos, estes são desumanizados para que os direitos humanos lhes sejam negados. Basta ver o comportamento omisso e criminoso dos Estados Unidos e seus aliados em relação aos ataques israelenses contra Gaza.
Enfatizando os aspectos críticos de Marx em relação ao direito, ao Estado e aos direitos humanos, Lênin recorda que as liberdades burguesas podiam ser consideradas como meios para o proletariado poder organizar-se. Já no comunismo, não havia razão para se falar em direitos humanos, pelo menos como “direitos de todos os homens”. Os exploradores burgueses não podiam ter os mesmos direitos dos explorados. Não existe uma situação de igualdade mas sim uma vantagem da classe anteriormente explorada no campo técnico, cultural, etc. Vantagem que não significa a abolição do direito ao voto[10]. Em uma sociedade plenamente socialista, os direitos humanos deixariam de ter sentido já que a conquista da igualdade e da liberdade plenas, significaria também a desaparição tão defendida por Engels do direito e do Estado[11].
Marx ao questionar o discurso dos direitos humanos, por uma parte olha intransigentemente frente as formas de dominação do capitalismo e frente a insensibilidade burguesa, tal aproximação tem mais vigência que nunca se consideramos que na atualidade milhares de seres humanos são vítimas da fome e da pobreza, terrorismo de Estado, invasões imperialistas, exclusão cultural, violência e pobreza apesar de que se conta com as suficientes capacidades tecnológicas para promover o bem-estar e produzir riqueza; precisamente a crítica de Marx ao capitalismo tem como ponto de chegada o logro da auto realização humana em um contexto social que a impede. Em segundo lugar, Marx construiu uma ferramenta teórica da maior importância para o pensamento crítico, a revelação do oculto, que nos termos da compreensão dos fenômenos sociais consiste em encontrar a brecha entre os interesses que possuem os grupos de poder dominantes e a dimensão dos valores e das ideias. Ambos aspectos cobram relevância atualmente, na medida em que os direitos humanos se vão construindo no seio do capitalismo e na tensão constante com ele, sobretudo no que respeita a lograr a igualdade material e a erradicação das condições de exclusão; por outra parte, o discurso dos direitos humanos também pode ser utilizado como um veículo para justificar a intervenção militar e desta forma favorecer interesses políticos e econômicos de certos grupos de poder. Basta recordar Kosovo, depois da “intervenção humanitária” da OTAN, a região abriga uma das maiores bases militares dos Estados Unidos (Camp Bondsteel) cujo objetivo é proteger um corredor energético que cruza a ex-Yugoslavia, a verdadeira razão da agressão ocidental camuflada de intervenção humanitária, este corredor é responsável, nos planos imperialistas, por levar petróleo e gás do Cáucaso e Ásia Central ao Ocidente. Além disso o Kosovo se converteu em uma banca de interesses privados e crimes como o tráfico de órgãos para transplante.
A intervenção humanitária talvez seja uma das piores manifestações da ideologia dos direitos humanos. Este tipo de atuação armada tem sido beneficiada por uma tolerância que o artigo 2 (4) da Carta das Nações Unidas dificilmente apoiaria[12]. Existem várias tentativas ao redor do planeta, em geral simpatizantes da ampliação do direito de uso da força, de criar exceções à exigência de autorização do Conselho de Segurança. Em geral se busca convencer que, em nome dos direitos humanos, uma intervenção humanitária, atualmente conhecida pelo termo Responsabilidade de Proteger (R2P) pode ser justificada. Tal intervenção se baseia mais em aspectos morais do que jurídicos. Baseiam-se na ideia que os Estados têm o dever de proteger suas populações e quando estes são incapazes de tal ou em casos extremos os responsáveis diretos por atuar de forma criminosa contra o bem estar de suas populações, o uso da força seria utilizado para evitar tal dano e para isso seria legítimo atuar mesmo sem autorização do Conselho de Segurança. O governo do Reino Unido era um dos mais entusiasmados na defesa da intervenção humanitária sem a devida autorização do Conselho de Segurança[13]. A R2P foi aceita pela ONU em 2005, porém foi esclarecido que qualquer intervenção deveria ser feita com autorização do Conselho de Segurança para ser entendida como legítima e em consequência de acordo com o direito internacional[14].
O marxismo pode arrojar elementos para identificar os discursos de direitos humanos favoráveis à intervenção humanitária que encobrem interesses hegemônicos. Além disso, a superação da concepção dos direitos humanos como ideologia, a identificação das ferramentas para a coesão social nas declarações de direitos e a afirmação consistente em reivindicar seu potencial emancipatório, são soluções que mais que o debilitamento da tese de Marx, contribuem ao enriquecimento do seu legado e a atualização de seus pressupostos teóricos para a compreensão da sociedade atual, em termos gerais a construção do pensamento alternativo se edifica em um pensamento com e apesar do mesmo Marx. Daí que as críticas efetuadas por Marx nos permite avançar na tarefa para não incorrer nos anacronismos que não se ajustam com as novas realidades[15]. Afinal em uma sociedade regida pelo capital, é nosso dever buscar utilizar os instrumentos disponibilizados por Marx para descortinar a realidade e deixar claro perante todos, as contradições que não nos permitem uma auto realização plena como seres humanos.















Postagem baseada nas referências citadas logo abaixo. Texto: Gutenberg A. Teixeira, Coluna Q Quantinnum, blog um quê de Marx.
[1] AMARAL, Alex Lombello: Papa Francisco não entende diferenças entre cristianismo e comunismo, clique aqui e acesse. [2] MARX, Karl: El 18 Brumario de Luis Bonaparte, em K. Marx-F. Engels. Obras escogidas, t. 1, p. 294, Ed. Progreso, Moscú, 1971. [3]GUZMÁN-RINCÓN, Andrés-Mauricio: La crítica de Marx a los derechos humanos: balance y perspectivas, cliqueaqui e acesse.
[4] PASUKANIS, E. B.: Teoría general del Derecho y marxismo, cap. VI (Derecho y moral), Ed. Labor, Barcelona, 1976. [5]GUZMÁN-RINCÓN, Andrés-Mauricio: La crítica de Marx a los derechos humanos: balance y perspectivas, , cliqueaqui e acesse. [6]GUZMÁN-RINCÓN, Andrés-Mauricio: La crítica de Marx a los derechos humanos: balance y perspectivas, cliqueaqui e acesse.  [7] ENGELS, F.: Contribución a la crítica del proyecto de Programa socialdemócrata de 1891, em: K. Marx-F. Engels, Obras escogidas, t. 3, p. 455. Ed. Progreso, Moscú, 1976. [8] ENGELS, F.: Introducción a K. Marx, La lucha de clases en Francia de 1848 a 1850, em: K. Marx-F. Engels, Obras escogidas, t. 1, p. 114, Ed. Progreso, Moscú, 1971. [9] ENGELS, F.: Introducción de 1891 a La guerra civil en Francia, de K. Marx, em: K. Marx-F. Engels, Obras escogidas, t. 2, p. 199, Ed. Progreso, Moscú, 1976. [10] LENIN, V. L.: La revolución proletaria y el renegado Kautsky, em Obras escogidas, t. 3, p. 86, Ed. Progreso, Moscú, 1961. [11] ZOLO, D.: La teoría comunista dell’estinzione dello Stato, pp. 17-18, De Donato, Bari, 1974.
[12] REISMAN, W. Michael: Reflections on the Judicialization of the Crime of Aggression, 2014, p. 68, clique aqui e acesse.  [13] TEIXEIRA, Gutenberg A. F.: A regra é clara: atacar a Síria sem autorização do Conselho de Segurança é ilegal!, , clique aqui e acesse. [14] Resolução 60/1 aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua 8ª sessão plenária de 16 de setembro de 2005, , clique aqui e acesse. [15] GUZMÁN-RINCÓN, Andrés-Mauricio: La crítica de Marx a los derechos humanos: balance y perspectivas, cliqueaqui e acesse. 




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