Pular para o conteúdo principal

LOCKE E A INVERSÃO DOS DIREITOS HUMANOS À SERVIÇO DO OCIDENTE (Parte I)


LOCKE E A INVERSÃO DOS DIREITOS HUMANOS À SERVIÇO DO OCIDENTE  (Parte I)



John Locke expressa seu pensamento democrático e dos direitos humanos em 1690. É a base para a tradição anglo-saxã e define até hoje o pensamento político imperial iniciado na Inglaterra e praticado na atualidade pelos Estados Unidos. Este pensamento surgiu em um momento histórico importantíssimo. Foi logo depois da vitoriosa Revolução Gloriosa de 1688, uma revolução tipicamente burguesa que declarou como fundamentais certos direitos como o Habeas corpus (1679) e a Carta de direitos [Bill of rights (1689)]. Desta forma declarava a igualdade de todos diante da lei e no centro de tudo isso se encontrava o parlamento como representante popular e da propriedade privada. Baseado em essa realidade, Locke formulou sua visão política em consonância com os fatos que ocorreram. A teoria de Locke serviria para a burguesia resolver alguns problemas relacionados com a declaração da igualdade. Naquele momento, a Inglaterra se afirmava como Império. Como um poder imperial em expansão, a Inglaterra entrava em conflito com a Espanha e a Holanda. A expansão imperial inglesa tinha como foco a América do Norte que estava conquistando e também o Oriente, traçando rota para a Índia e por isso, colocando-se também, em conflito com a França. A Inglaterra também buscava conseguir o monopólio do comércio de escravos controlado pela Espanha. O próprio Locke e depois Voltaire investiram suas fortunas neste comércio. Mas como justificar a expansão de um império em ascensão? A Inglaterra se enfrentava a outros impérios e para se contrapor precisava de uma nova política ideológica para se legitimar e deslegitimar os impérios concorrentes. 

OS INTERESSES DA COROA 
A urgência por uma nova teoria política era clara. Se antes a expansão dos impérios se justificava pelo direito divino real e antes disso pela determinação papal de terras para conquistar em nome da civilização cristã, com a revolução da burguesia isso não era mais tão fácil por haver suprimido o direito divino real em favor de um reinado constitucional. O Habeas corpus e a Carta de direitos estabeleceram os direitos humanos de carácter liberal que a burguesia não podia renunciar. Era a ideologia escolhida para enfrentar o direito divino real. O direitos defendidos pela burguesia garantiam a vida física do ser humano e suas propriedades e convertia a autoridade governante em um poder ao seu serviço. Porém, a igualdade defendida tinha suas contradições já que entrava em conflito com a própria burguesia e sua vontade de estabelecer um império no mundo. O resultado da contradição foi o divórcio entre a declaração da igualdade diante da lei e o poder de fato da burguesia. A teoria de Locke chega para oferecer uma “solução”, ou melhor, um apaziguamento do problema: a inversão do conceito de direitos humanos. O resultado de tal inversão foi a rápida aceitação da burguesia inglesa e depois por todas as burguesias das outras nações. 

MAS AFINAL, O QUE LOCKE PROPÔS?
O pensamento de Locke aceito pela burguesia é defender que todos os homens são iguais por natureza o que implica o direito igual que todos os homens tem sua liberdade natural sem que estejam submetidos a vontade e autoridade de outros homens e levando a conclusão chocante que a escravidão é legítima! Justificando assim a expropriação dos índios americanos e colonizar a Índia pela força. Essas ações em Locke são legítimas pois se baseiam no seu entendimento de igualdade entre os homens. Para Locke essas ações não violam os direitos humanos e seriam em realidade a própria aplicação fiel dos direitos humanos. Neste contexto, dizer igualdade é o mesmo que dizer que a escravidão é legítima. É dizer que para garantir a propriedade privada, significa expropriar de forma ilimitada os índios americanos. A burguesia aceitou com muita satisfação esta nova “interpretação” ou inversão dos direitos humanos de Locke. A teoria política de Locke era tudo o que a burguesia inglesa precisava para justificar suas ações. De um golpe de força nasce o conceito da inversão dos direitos humanos. Locke argumenta que a América do Norte não se constituiu em um estado civil enquanto que na Ásia sim. Sendo o estado natural um estado de igualdade e liberdade onde cada um está obrigado a sua própria conservação e a não abandonar a posição que ocupa. Assim sendo, quando não está em jogo a própria conservação, se pode fazer algo pela conservação dos demais seres humanos, e não lhes prejudicar ou sacrificar a vida, a menos de que se trate de fazer justiça, uma justiça baseada na lei da Natureza cujo objetivo é a “busca da paz e da conservação de todo o gênero humano”. Valora o respeito da integridade física humana e o respeito as propriedades. Dentro deste estado natural, a execução da lei natural permite a qualquer um castigar os transgressores desta lei. Um estado de “igualdade perfeita” onde qualquer um tem o direito de castigar um culpado, fazendo-se executor da lei natural onde qualquer um pode decidir fazer-se de juiz e o culpado perde sua humanidade para ser entendido como uma abominação, um mostro. O fato de transgredir a lei natural, faz do culpado um ser sem razão e equidade comum, ou seja, sem a medida que Deus estabeleceu para os atos humanos, visando sua segurança. Ao desrespeitar tal medida se converte em uma ameaça ao gênero humano, comete um crime contra a própria espécie e contra a paz e segurança proporcionada pela lei natural. Ao violar estas leis o culpado ao afastar-se da “justa razão” será qualificado como um degenerado, um ser danoso que está afastado dos princípios da natureza humana. Este ser monstruoso, daninho e degenerado ao renunciar a “razão” (regra comum e medida de Deus), declara a guerra contra o gênero humano utilizando uma violência injusta e a morte violenta que proporcionou ao outro será aplicada a ele também como se abate um tigre ou qualquer outra fera selvagem a qual o homem não pode conviver em segurança em sociedade. Logo este ser culpado, deve ser destruído todo vez que é uma ameaça ao ser humano. Quando se levantou contra o gênero humano, deixou de ser humano e deve ser tratado como um animal selvagem desprovido de razão. Ao cometer seu crime este ser renunciou a seus direitos humanos e torna-se um ser a exterminar. Curiosamente, ao mesmo tempo que se nega o direito à vida do transgressor, sua propriedade deve ser protegida da pilhagem. Se antes o vencedor se atribuía o direito de pilhar as propriedades do derrotado, agora em Locke só é permitido apropriar-se de maneira legal. Para isso defende que quem recebeu um dano tem o direito especial de exigir reparação em seu próprio nome. Quem sofreu o dano tem o direito de apropriar-se dos bens ou serviços do culpado em virtude do direito da própria preservação. Assim sendo ao culpado no lhe foi roubado ou pilhado nada, mesmo que tenha perdido tudo, está reparando o dano que causou. Uma visão que vem justificar a escravidão, pois se lhe exige os bens ou serviços do culpado, se lhe está escravizando legitimamente. Assim que o estado natural em Locke de fato não é um estado de paz mas sim um estado de ameaças por parte de culpados potenciais, todos seres desumanizados, feras selvagens, monstros. Locke em nome da paz faz a guerra, uma guerra contra todos aqueles que ameacem ou queiram violar a integridade física e as propriedades.

Quando Locke fala em estado de natureza, não se refere ao passado mas sim ao presente. Se refere à América, para insistir que ali existe um estado natural sem nenhum estado civil ou político. Porém também fala das sociedades com estado civil (Inglaterra, Índia). Para Locke, um estado civil é uma sociedade com uma autoridade que assegura a lei da natureza com uma autoridade política, onde se perpetua o estado natural como ordem fundamental. O inimigo, o culpado, o monstro, a fera selvagem que deve ser destruída, é todo aquele se oponha a burguesia em seu caminho de expansão. Quem está contra a burguesia, se levanta contra o gênero humano e por tanto perdeu todo o direito humano, é apenas um objeto para extermínio. A teoria do estado natural vê a burguesia em uma guerra permanente contra os inimigos que se levantam contra o gênero humano por resistir ao processo de transformação e imposição burguesa. Assim sendo, o estado de guerra é resultado do estado natural. O estado de guerra é o estado onde a humanidade de Locke se encontra. Para Locke, o estado natural é uma bandeira de luta pois onde existir estado natural, se deve civiliza-lo para que se transforme em estado civil ou estado político. Onde exista um estado civil, se deve submetê-lo à lei da natureza do estado natural. Desta maneira o que se defende em relação ao crime no estado natural é ampliado a um conflito geral como o mundo inteiro. Um verdadeiro estado de guerra onde a construção do estado natural permite transformar toda resistência à burguesia em uma guerra de agressão, na qual a burguesia possui o monopólio da paz e da legítima defesa. A burguesia declara a guerra contra a agressão, onde não existe uma parte contrária que não seja má, danosa, bestial e selvagem contra o gênero humano, a razão e como consequência conta Deus. Toda guerra da burguesia é uma verdadeira cruzada, uma guerra santa onde os adversários renunciaram “eles mesmos”. Em pouco tempo, apoiando-se em Locke, a Inglaterra, pelo uso da força e da ameaça, consegue todos os seus objetivos: obtém o monopólio do comércio de escravos entre África e a América espanhola; continua conquistando e expandindo-se pela América do Norte; e com a derrota dos franceses tem assegurado o avanço e domínio sobre a Índia.








Texto: Gutenberg Alves Fortaleza Teixeira, colaborador e colunista do blog Um quê de Marx.
É permitido o compartilhamento desta publicação e até mesmo a edição da mesma. Sem fins lucrativos e cite a fonte. Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
Licença Creative Commons


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CHARGE: A indústria e a alienação do trabalho

A indústria e a alienação do trabalho A charge de Caulos, de 1976, apresenta uma crítica bem humorada ao processo de alienação do trabalho sofrido pelos operários nas fábricas. Fonte original: Caulos. Só dói quando eu respeiro. Porto Alegre: L&PM, 1976.p. 65. Digitalização: Fernanda E. Mattos, autora e colunista do blog Um quê de Marx. É permitido o compartilhamento desta publicação e até mesmo a edição da mesma. Sem fins lucrativos e cite a fonte. Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional .

''A ESCOLA DO MUNDO AO AVESSO'' - De pernas pro ar, Eduardo Galeano + Download livro em PDF

''O MUNDO AO AVESSO'' Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História. “Esse livro é uma patada em cima da outra”. E m “De Pernas Pro Ar”, Galeano exerce todo seu conhecimento da cultura e política da América Latina sob o olhar atento de alguém que, desde 1971, com “As veias abertas da América Latina” vem criticando a exploração de nossa sociedade pelo assim por Deleuze chamado de Capitalismo Mundial Instituído. O mundo ao avesso é um mundo trágico, onde tudo acontece, um mundo onde não há resistência e sim apenas conformidade e visões distorcidas, em outras palavras, a escola do mundo ao avesso é a "contra escola existente". "O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, ...

"A carta do povo", manifesto enviado ao Parlamento inglês em 1838

"A carta do povo", o manifesto enviado ao Parlamento inglês em 1838. "A carta do povo", símbolo da organização política operária inglesa.  A influência do cartismo A influência do movimento cartista foi, portanto, decisiva para o surgimento do "comunismo operário". O cartismo, por sua vez, testemunha o impetuoso surgimento da classe operária no cenário social europeu¹.  Glossário Censitário: critério que exige uma determinada renda particular do processo eleitoral. Subversivo: que expressa ideias e opiniões buscando a transformação da ordem estabelecida. Texto síntese e Org. Fernanda E. Mattos, autora e colunista do Blog Um quê de Marx Blog. Postagem baseada na coleção: História, Editora: Iscipione. ¹ Referência utilizada da Introdução de: "Manifesto comunista" p.12. Editora: Boitempo. É permitido o compartilhamento desta publicação e até mesmo a edição da mesma. Sem fins lucrativos e cite a fonte. Crea...